quinta-feira, 24 de junho de 2010

Vinte e dois

Vinte e dois de junho.

Há vinte e dois anos atrás eu mergulhava assustado no mar de luzes brancas que não me deixavam abrir demais os olhos e em meio ao barulho ensurdecedor do caos dos carros na avenida nove de julho do lado de fora da janela, eu gritei, pela primeira vez.

Vinte e dois anos à frente, na madrugada gélida no início de mais um inverno, sozinho na sala de casa. Apenas eu. Eu e o silêncio. Um cigarro, um café requentado. A respiração dos que dormem. Se houvesse um número, talvez alguma mensagem chegasse, talvez. Se a internet funcionasse, eu notaria mais cedo e desinteressado a falta de criatividade dos mecanizados que desejam o velho parabéns, tudo de bom, muita saúde, paz e dinheiro no bolso. É fácil falar. Ninguém pensa na sua saúde enquanto você acende um cigarro atrás do outro. Muito menos na sua paz, quando nada parece dar certo, quando as mulheres não te olham e não te querem, quando você se senta pra escrever e sente o vazio sufocante da folha e seus dedos não se mexem, quando você cai, quando não vão com a tua cara, ninguém de fato se importa. Ninguém põe um Real no seu bolso ou te paga um café. Não te oferecem um bolinho de haxixe, nem um pouco de sexo casual só porque há vinte e dois anos atrás você ganhou o incrível privilégio de estar pronto pra morrer.

Sem novidades, deitei em minha cama e dormi. Nos meus sonhos o meu subconsciente jorrava imagens de pessoas e animais e situações absurdas, que não valem registro. De manhã, minha sobrinha chega para esperar o horário da escola. Me acorda e pergunta sobre o controle da tv. Eu o pego no canto do colchão, troco-o por um beijinho e volto a dormir. Sono despedaçado. Abro os olhos de vez em quando. Ouço minha mãe chegar para o almoço e finjo ainda dormir pesado. Por algum motivo, não quero me levantar. Adormeço de novo, esperando que alguém me acorde com algum carinho, que me dê um abraço. Desperto de novo com a narração de um gol. Olho fixo para o teto, já deve ser de tarde. Tenho de buscar remédios para minha mãe no posto de saúde. Posso aproveitar para passar em alguma lan-house e checar meus e-mails. As melhores mensagens sempre vem por e-mail. Fecho os olhos. Hoje parece ser o dia mais frio do ano. Por dentro e por fora.

Por algum motivo, ainda espero deitado, pensando alto. Começo por elas, claro. A primeira e mais tímida, por mais que tivesse sangue espanhol, mandaria simpáticos cumprimentos via net, o que se confirmou mais tarde. A segunda talvez viesse, depois de três anos, me mostrar suas novas tatuagens e quem sabe outras coisas interessantes que aprendera nesse meio tempo, me olhando com os mesmos olhos meigos de sempre depois de testar meu fôlego. Não. Então penso na terceira, que viria acompanhada de dois ou três amigos em comum, trazendo cervejas e petiscos, talvez com um bom livro ou disco pertinente. Passaríamos uma tarde agradável, tomando o devido cuidado de não olhar muito nos olhos e parecermos bons amigos e não o tipo de gente que espera o menor descuido dos presentes pra relembrar o passado dentro de um banheiro qualquer. Não. A quarta não me surpreenderia. As outras são apenas outras. Chega. Nenhuma virá. Talvez, daqui a meia hora algum amigo grite no portão, ansioso por alguma boa celebração de terça-feira, então novamente eu fecho os olhos. Penso no meu pai. Sonhos breves e desconexos. Abro os olhos novamente, dessa vez ciente que ninguém virá. Não há o que, não há quem, não há mais nada a esperar.

Me levanto e sinto o frio arrepiar meus pelos do corpo inteiro, visto apenas uma calça leve. Passo pela sala, meu irmão assiste a novela debaixo de cobertas no sofá, eu vou direto até a cozinha, até a garrafa de café, pego um pouco e esquento onze segundos no microondas, enquanto acendo um cigarro. Sinto o olhar de desaprovação às minhas costas mas não olho. Bebo o café e termino de fumar olhando para o espelho ao lado do banheiro. Evito tirar conclusões, apenas termino de fumar, pego uma toalha e tomo um banho quente, exercitando minha técnica infalível de cantarolar músicas mentalmente para evitar pensar no que acontece do lado de fora. Um escapismo conveniente, ou uma fuga ritmada como eu gosto de chamar. Sempre funciona.

Saio no frio fazendo tudo rápido. Cueca. Meias. Desodorante. Calça. Camiseta. Blusa. Tênis. Cigarros. Isqueiro. Receita. Rua. O dia é cinza, o vento é ártico, com sereno constante. Eu caminho até o posto e lá me dou conta de que minhas primeiras palavras do dia foram “por favor, onde fica a farmácia?”. Retiro os remédios, faltou amoxicilina. Ando um pouco pela rua, nada demais acontece. Volto para casa a tempo de ver o jogo da Argentina contra a Grécia. Passo raiva, gregos não sabem jogar bola. Talvez entendam de churrasco gorduroso no Anhangabaú, ou de beijar cus por aí, mas não de futebol. Faço minha primeira refeição, um pão com manteiga. O jogo acaba, minha mãe chega, eu mostro os remédios, ela diz que precisava mesmo era da amoxicilina e me deseja um feliz aniversário, eu respondo um valeu inaudível.

Decido almoçar e sair. Talvez algo me espere lá fora, fora o frio. Talvez alguém esteja me procurando, fora eu. Talvez o futuro esteja guardando o meu presente. Talvez...

Mas não houve nada demais. Na lan-house, a garota que me conhece me deseja parabéns pelo aniversário e logo em seguida pergunta minha data de nascimento para fazer meu cadastro. Eu digo número por número observando sua expressão surpresa por ver que os números que eu dizia eram exatamente idênticos a data de hoje, exceto pelo ano. Algo se mexe dentro de mim. Dou a ela meus únicos cinquenta centavos, e ao creditar na minha conta, o sistema me dá duas horas extras pela data especial. Finalmente, um pouco de magia. Vejo os recados (parabéns, tudo de bom...etc.), jogo umas partidas de pôquer e saio.

Encontro uns amigos, alguns deles acendem velinhas. Outros abrem vinhos. Uma me entrega o original de um trabalho de escola feito com textos meus. Uma antologia. A professora quer me conhecer. Esqueço de perguntar se é bonita. A noite segue.

Vinte e dois de junho. Há vinte e dois anos atrás eu mergulhava assustado no mar de luzes brancas que não me deixavam abrir demais os olhos e em meio ao barulho ensurdecedor do caos dos carros na avenida nove de julho do lado de fora da janela, eu gritei, pela primeira vez, e não havia volta.