terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Uma Carta


Eu estive perdido nas ruas da cidade, com meus passos largos e rápidos,
Sem destino algum, minha vista embaçada e sem foco e sem cor, como num filme noir daqueles bem sujos, é, eu caminhei muitas milhas até aqui.
Eu vi todo tipo de pessoas e vi pessoas que haviam deixado de ser e vi a expressão do mundo nos olhos de um garoto de no máximo oito ou nove anos de idade que idolatrava e beijava sua garrafinha de tiner como se fossem as chagas de Cristo.
Quando me olhar nos olhos, não fique constrangido por não reconhecer o velho brilho, e se isso lhe entristecer eu irei entender. Minhas lágrimas secaram e minhas olheiras denunciam que perdi o sono há tempos. E nesse meio tempo, enquanto estava perdido e tentando me encontrar, muita coisa mudou pelo que vejo.
Me desculpe, mas não posso deixar de achar graça quando você se refere “ao meu mundo”, como se não fosse também o seu.  É triste que nossas reminiscências não passem de pura nostalgia, folhas de papel amareladas cheias de retalhos de antigos sonhos, às traças, ‘nosso mundo’, às traças.
Enquanto você trepava prestando tributos à Dionísio e toda sorte de paganismo orgiático, seguindo firmemente sua convicção de arauto da Luxúria, eu andei  sobre poças d’água e procurei bitucas pelo chão e ouvi sussurros e gritos e murmúrios pelos cantos e ao fundo o ressoar dos cascos de cavalos negros como a noite e rápidos como o vento, e por onde passavam tudo era lamento meu  caro, lamentos, e enquanto isso eu tentava imaginar em que ponto tornamo-nos insuportáveis e nocivos um ao outro.
Interdependência? Talvez. Existiam muitas coisas entre nós, sabíamos muito um do outro, e isso incomodava as pessoas; éramos livres e libertinos e rápidos demais pra que qualquer um daqueles párias acompanhasse. Quando tentavam ser como nós já havíamos mudado e mudado de novo. Esses foram os velhos tempos meu amigo, mas nos perdemos.  Eu dentro de mim, e você dentro de alguém.
Agradeço que tenhas indagado-me sobre aquele assunto, mas deixo minhas apologias, perdi  a prática quanto à enigmas e já não tenho a insistencia necessária para que fales claro comigo, logo, eu passo.
Se quiser conversar à respeito, sabe onde me encontrar, quando quiser.
No mais, espero que alcance seu objetivo, se é que ainda tens algum.


Um beijo fraterno, do seu,
                                    Lou.

é isso.


é isso. alcool, café, algumas mordidas, cigarros, potencial ocioso, esse sou eu. 

marvin, ban, lou reed...já não faz mais diferença.

procurando, esses somos nós, só procurando.


segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Nós e o Vazio

Nesse lugar já desgastado

Cheio de rostos retorcidos pelo tédio e pela mediocridade

Um cenário repleto de improbabilidade

Mas existe uma variável rara, a mais bela e luminosa excessão

Nesse imenso baile de máscaras, de movimentos ridiculamente repetitivos

Dançamos fora do compasso, criamos novos ritmos, e risos e choros e gritos

Algo só nosso.

Um extâse vezes doze.

Revolver

meu amor, o tempo rasteja. lento. lento.
 
o mau tempo persiste, uma chuva fina
 
o vento, ciscos nos meus olhos
 
eu tentando me animar, eu juro
 
eu juro que tento
 
em vão por enquanto. to sentindo muito a sua falta, cada vez mais
 
nocivo, lasciva relação entre dor, ausência, amor
 
e esses tipos de coisas. pequenos tormentos.
 
antes fossem seus olhos tempestuosos
 
antes fosse aquela chuva que nos mantem um pouco mais próximos
 
um pouco mais nossos...e de mais ninguem.
 
eu to pura abstinencia. revolvendo os confetes de um carnaval que já terminou.
 
Sem Momos, sem Pierrôs, sem...
 

Quero todos!

009

um poeta sem sua musa soa como
um baile sem música
um vinho sem alcool na noite sem lua
zero vírgula zero porcento de inspiração é o que me move
e agora já é dois do um
dois zero zero nove
e não há o que lamentar
não há o que temer
apenas deixar que venha
o que virá
e que seja indolor
que tenha a ver
com correr e buscar
moldar esse maya antes que ele me molde
eu vou destilar essas palavras
antes que elas me afoguem
e vou soprar pra quem quiser sentir
vou ouvir quem fizer questão de cantar
e correr quando alguem me esperar
deixar que me inspirem como ar
e percorrer as veias de quem quiser provar
invadir e envolver e depois
tirar a noite pra dançar
pedir que fique o quanto quiser ficar
me munir de empatia
agora não há porque brigar
seu reflexo sumiu do meu espelho
mas eu não me canso de olhar
algo ficou
algo sempre fica pairando no ar
como se não tivesse passado tempo
e fosse possível tocar
mas as velhas coisas bonitas
aquelas pessoas imperfeitas e tão nossas
já não ocupam os mesmos lugares
são agora devaneios e frases soltas
assimilações de imagens e sons
e aromas esvaídos entre outros milhares
sei que já me peguei parado esperando
algo que não ia acontecer porque já tinha acontecido
e foi triste dar-me conta que as páginas eram outras
ainda em branco
ainda em pranto
recomecei a escrever novos parágrafos
verso verso verso e pronto
bastava começar e não olhar pra trás
sem revirar o que poderia ser
simplesmente partir daquele ponto
mas sem mentir e dizer que não imagino
um belo reencontro
regado a café e novidades
livros velhos e novas sonoridades
Jack Kerouac e Sylvia Plath
e todo o resto que só pertence a quem quiser
tudo aquilo que me arrepia só de pensar.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Es ist ja Wahnsinn, net?



Alguns violinos distonantes e distorções de guitarra
Microfonia e gritos
Experimentalismo, algo muito etílico, insPirado
Uma sinfonia

Antes fossem esses dias insípidos
Ao menos amargos, ao menos melodiosos, mas não
O gosto é de ferrugem e bolor e silêncio
Especialidade da casa

Marasmo, torpor

Dias cheios de calor vazio
O vai e vem dos que não tem aonde ir
E o senta e espera dos que não sabem o que querem
Eu quero

Sair

Para ouvir algo além do som do espancamento
Surrado por samsara, respirando sem autonomia
Brincando de apnéia forçada, provocando desmaios
Morrendo alguns segundos, dispersando a dor

Um dia, dois dias
No terceiro pode arder, lacrimejar
Muito sintomático, mas não adianta correr, Jesse Owens
Não existem causas

Não há o que explicar.

Ela e Ele

Era uma noite de sexta-feira, Ela havia saído de casa apressada, à procura de algo ou alguém, não sabia ao certo, andava tão confusa ultimamente. Sabia apenas que precisava dissipar aquela nuvem obscura de dúvidas e vontades que pairava sobre sua cabeça, e enquanto pensava sobre essas coisas Ele apareceu pedindo fogo, Ela ofereceu seu isqueiro e Ele o agarrou um pouco trêmulo e acendeu um cigarro enquanto Ela o observava estudando sua expressão que parecia entediada e levemente desesperada também.
Ele sentou-se em frente a uma loja fechada e recostou-se na porta de ferro displicentemente, devolveu o isqueiro e balbuciou um "obrigado" quase inaudível. Ela sentou-se ao seu lado, Ele não pareceu surpreso, "deve estar perdida também", pensou, e enquanto Ela começava a puxar assunto, seu olhar a transpassava e a todo o resto, não que procurasse de fato algo, ou alguém, mas Ela seguia lhe falando sobre pessoas que Ele nem conhecia, então começou a contagem regressiva que sempre fazia, "depois desse cigarro eu vou embora", pensou, ignorando que era o terceiro cigarro que fumava com esse intuito.
Na verdade, Ela havia ensaiado coisas para dizer a Ele quando houvesse coragem e oportunidade, e Ela contava apenas com o segundo fator e não estava seguindo o script, estava perdendo a mão da cena; Ele ouvia o que Ela dizia, às vezes respondia com monossílabas ou meio evasivo, tragando o cigarro e soprando fumaça na brasa, que a essa hora alcançava o filtro.
Quando Ele deu o último trago, Ela sabia que o próximo passo seria Ele ir embora, mas antes que Ele jogasse fora seu cigarro, Ela sacou um e segurou a mão dele, deslizando até seus dedos, pegou a bituca ainda viva e a encostou na ponta do cigarro apagado, acendendo-o em um trago longo, soprou a fumaça na direção do rosto dele, por querer.
Ele abanou o ar e franzindo o cenho, perguntou meio irritado, "você quer me beijar, ou só me matar mais rápido mesmo?", Ela riu e passou à Ele o cigarro, "só queria um trago!" disse Ela, com a sensação de ter acertado no alvo.
Agora Ela reclamava de algum professor, e Ele parecia agora mais interessado, se não no assunto, talvez nas poses coreografadas que Ela usava sem dó; mexia no cabelo e sorria bonito e depois mexia nos botões da blusinha, como se dissesse "olhe pros meu peitos, não são lindos?", e bem, na realidade eram, então Ele resolveu adiar sua partida mais alguns cigarros.
Ele não estava elétrico como costumava ser, mas mantinha aquele charme sombrio, com olhos de mistério que deixavam a todos em suspense esperando sua próxima frase que nunca era óbvia, e podia ser profunda, naquele seu jeito de disfarçar melancolia com sarcasmo, ou simples e terrívelmente engraçada, nunca se sabia, e Ela sabia apenas que queria toda sua atenção para si, até que não lhe restasse escapatória a não ser para o lado dela.
Ele estava vulnerável. O amor de sua vida havia deixado claro, "não podiam ficar juntos", e depois de lhe pedir que "se cuidasse", simplesmente sumiu numa noite de lua cheia, deixando-o desolado e perplexo, seus sentidos abandonando-o, tornando-o cego, surdo, mudo e insensível; lembrou-se, naquela noite alguém tirou o chão debaixo de seus pés, atirando-o fundo nas trevas patéticas do desamor e do abandono, naquela noite tristemente linda.
Despertou do devaneio sorumbático notando a presença de outra garota, que insistia para que Ela a acompanhasse a algum lugar, Ela somente olhava a amiga que não a ouvia gritando por dentro "não! não!", então olhou para Ele, que fingia estar distraído e voltou a olhar para a amiga que se conformou e foi sozinha, depois de pedir que a esperasse voltar.
Essa foi a deixa para que Ele jogasse fora seu cigarro como se jogasse seu passado recente e infeliz junto, então olhando-a decidido, perguntou já de pé "é agora que a gente some, ou você só vai me desejar boa noite?", e Ela agora tinha uma expressão de surpresa e alegria reais, e depois de um instante de dúvida Ela disse "pra onde?", e Ele reagiu lhe dando a mão para que se levantasse, e dizendo que sabia de um lugar.
Andaram rápido e subiram uma rua, afastando-se do centro da cidade, Ele a puxou pelo braço para dentro de uma espécie de construção abandonada, onde alcançaram uma varanda grande no alto, estava apropriadamente escuro, Ela estava excitada e seu coração bateu forte como nunca quando Ele a encostou na parede e beijou-a frenéticamente os lábios, depois percorrendo seu pescoço e nuca, ao mesmo tempo em que abria sua blusa e acariciava-lhe os seios e tudo era êxtase e os dois ousavam e improvisavam movimentos e entrelaçavam-se cheios de ânsia, e logo estavam no chão sob um teto magnífico de estrelas, num frenesi de mãos e línguas, palavras soltas e unhas...
Ele rolou e logo estava por cima dela, beijou-lhe a barriga lisa, deslizando para baixo, alcançou e abriu-lhe o botão de seu jeans com os dentes, e quando tateou e encontrou o zíper, sentiu a mão dela sobre a sua e a olhou nos olhos para saber o que havia de errado.
Ela tinha um olhar entorpecido e quase suplicante, mas olhava-o com vontade quando disse "você só precisa dizer duas palavras", e sustentou aquele olhar de expectativa enquanto esperava uma resposta que pairava naquele ar na forma de silêncio absurdo e terrível.
Ele a olhou como se não houvesse entendido direito, e naquelas frações de segundos seguintes, Ele pensou em simplesmente mentir e aproveitar o momento, talvez fosse o que Ela queria que Ele fizesse; dissesse o que Ela queria ouvir, mas isso significava arcar com o peso daquelas palavras depois. Pensou também em algo enormemente cretino pra dizer em duas palavras, algo que faria Bukowski corar, mas também não disse.
Ela o fitava, e por um instante pareceu que Ele iria sorrir e dizer, mas o que parecia um sorriso de canto, retorceu-se e transmutou-se em algo que parecia confusão, depois desapontamento. Ele se levantou, acendeu um cigarro e olhou para as luzes da cidade, Ela encostou a cabeça no chão e apertou os olhos com as mãos, sentindo-se estranha.
Ele apagou o cigarro na metade e disse que tinha de ir embora. Ela disse "eu também", com a voz meio que falhando.
Desceram juntos e foram para lados contrários.
Ela chegou em casa, tomou um banho, chorou e dormiu convencida de que Ele valia a pena.
Ele chegou e foi direto dormir, decidido a deixar tudo como estava.

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Heroína


Cabeça apoiada na parede. De sua cama fitou o breu à sua frente, acompanhando a fumaça que transpassava a escuridão até chocar-se dispersa com o fiapo de luz débil e amarelado deixado pela porta entreaberta. Um pequeno trago. Chega.
Apagou o cigarro e tentou imaginar que horas eram, mas na realidade não fazia diferença, era apenas mais uma daquelas noites onde não havia ninguém por perto. Podia ouvir o barulho que fazia quando um  mosquito insistia em dar cabeçadas na lâmpada. TzzzTuk, TzzzTuk, TzzzTuk...
Caralho, disse pra si mesmo colocando os pés descalços no chão.
O quarto cheirava a cigarros e cirrose. Umas infiltrações, mofo. Porra e insenso de canela. Náusea.
Banheiro. Caminhou sonolento pelo corredor estreito. Uma planta agonizante, chapada e quieta no canto da porta. Abriu.
Paralisado, coçou a cabeça. Era linda e pálida. Ruiva, seminua. E tinha uma seringa pendurada no antebraço, cabelo úmido e olheiras que pareciam buracos negros. Fechou a porta, olhou pra planta. Água.
Foi à cozinha, armário, jarro. Água, quarto, corredor, porta, parou.
Planta. Não dessa vez. Abriu, despejou. Hey acorda. Nada. Acorda! Nada. Pulso. Pulsa. Sentou-se ao seu lado no chão molhado e pôs sua cabeça sobre seu colo. Reticências.
Aquilo o assustava, mas estranhamente sentia-se melhor. Não se lembrava de como ela fora parar ali, mas não estava mais sozinho. Adormeceu abraçado a ela, sentindo-se completo e protegido. Encontrara o amor de sua vida, morrendo no seu banheiro, e só se deu conta que era real quando encontrou sua carteira vazia na manhã seguinte, a planta tomando sol na janela.

Matheus 13:43



Vícios são como aqueles pesadelos terrivelmente recorrentes que te atacam no meio da noite aproveitando-se da vulnerabilidade do sono e da mística da escuridão.
Eu havia me livrado do meu, me mudado para uma vizinhança pacata; com o dinheiro que tinha pude alugar uma pequena casa, que usava para dormir durante o dia, enquanto ocupava-me com minhas leituras pela madrugada afora. Quase nunca saía, tudo parecia correr muito bem.
Até que, em um fim de tarde do inverno passado as coisas começaram a mudar. Havia acabado de acordar, posto a água do café para ferver e fui barbear-me. Com o rosto coberto de espuma, apreciava a quinta de Ludwig Van Beethoven no radinho enquanto retirava a navalha afiadíssima do estojo e iniciava a primeira passada, quando soou alto e claro no meu banheiro um som tuberculoso de tosses consecutivas, uma crise infernal de pulmões desesperados que se revolviam como se quisessem ser cuspidos, como se quisessem um pouco de ar fresco.
Aquilo perturbou-me, e a tensão cresceu quando olhei no espelho e ele olhou-me com aquele olhar de quem sabia o que eu estava pensando, olhar que não via há algum tempo, enquanto um fiapo de sangue brotava em meio à espuma.
Abri o armário, tentando esquivar o espelho, enxuguei o rosto, dispensei a água fervente na pia, vesti-me e saí.
Passei a noite em um prostíbulo, em meio aos gemidos das putas e ao brilho esmeralda do absinto, e absorto, percebi (lembrei?) que as cores e os sons que excitavam-me eram outros...
Pela manhã, ia aproximando-me de casa, quando o vi, velho, caquético, sentado em frente o portão de sua casa, as mãos trêmulas em espasmos dignos de Parkinson, uma delas levava um lenço até a boca e impedia que escarrasse nos transeuntes e abafava aquele som horrendo; cada vez que tossia, parecia que seus orgãos internos trocavam de lugar. A visão embrulhou-me o estômago e a claridade era demais. Cheguei em casa, vomitei, depois um longo banho e cama.
Acordei já era noite, provavelmente a mais fria do ano. Preparei algo para comer e tomei um cálice de vinho. Peguei Dostoiévski na estante, e foi bater o olho nas páginas e recomeçou o terror e já não tentei mais conter meu ímpeto, agora vejo, Matheus estava correto: Quando o espírito imundo sai do homem, anda por lugares áridos procurando repouso, porém não encontra. Não encontra.
Arrumei minhas coisas, separei as ferramentas, guardei na mala, saí e fui direto na direção da casa do ancião. Foi fácil, o portão estava destrancado, sabia que seu quarto era nos fundos. Abri a porta do quarto, ele olhou-me com olhos de terror, esbugalhados, e o susto potencializou sua crise, coff, coof, blearghh, mandei que se calasse, ele murmurava e tossia, eu abri minha mala e peguei minha Bíblia e minha navalha, me joguei em cima dele apoiando meus joelhos no seu tronco sobre a cama, enquanto recitava as últimas palavras que aquele maldito enfermo ouviria antes de se juntar ao Senhor: (...)"põe-se de tocaia nas vilas, trucida os inocentes nos lugares ocultos, seus olhos espreitam o desamparado. Está ele de emboscada para enlaçar o pobre: Apanha-o, e na sua rede o enleia. Abaixa-se e rasteja; em seu poder lhe caem os necessitados. Diz ele, no seu íntimo: Deus se esqueceu, virou seu rosto e não verá isso nunca".
Cortei-lhe a garganta, o som derradeiro, já não parecia uma tosse. Abri-lhe o tórax, extirpei os pulmões negros dos quais escorria uma espécie de suco, fedia a nicotina, pendurei-os no varal, e enquanto observava seus movimentos ao vento, recitei o Salmo 26:6*.
Fui direto à estação de trem, partiria para o Leste. Comprei um maço de cigarros e um café; voltei a ser quem eu era, e inexplicavelmente, sentia-me feliz com isso.


*Lavo as mãos na inocência, e assim, andarei, Senhor, ao redor do teu altar.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Samsara


Acordara sobressaltado e transpirando. Havia sido difícil se libertar dos  pesadelos recorrentes com os quais sonhava quase todas as noites. Olhou em volta, seus olhos se adaptando à escuridão de seu quarto, vislumbrou a porta entreaberta.
Sentou-se a beirada da cama, controlando a respiração antes ofegante, e procurou em volta pelo par de tênis surrado. Calçou e se dirigiu a cozinha. Estava a casa vazia. Olhou o relógio do velho microondas, 00:30 de uma sexta-feira fria.
Abriu o armário em busca da caixa de remédios, sacou uma cartela de analgésicos (único remédio que lhe amenizava as terríveis dores de dente). Ingeriu duas pastilhas que deslizaram até seu estômago, embaladas por um gole de saquê, que jazia esquecido no fundo de sua geladeira semivazia. Estava desempregado havia mais de dois meses. Havia trabalhado em quase todas das poucas pequenas indústrias de sua cidade, que era do tipo “cidade-dormitório”, perto da capital do estado, porém longe de ter um desenvolvimento significativo.
Costumava dizer que essas tais indústrias te contratavam, te exploravam em caráter de “experiência” e depois te davam um kit; “kit-fóde”. Rua de novo.
Quando jovem freqüentava a igreja por obrigação, e constrangia seus pais quando questionava publicamente o padre local com as mais cretinas perguntas sobre a existência de Deus (da qual sempre duvidou). Com 14 anos leu Nietzsche pela primeira vez, e decidiu que já era hora de matar aquele velho senhor barbudo, que desde sempre controlara sua vida, e que havia levado embora a maioria das pessoas com as quais chegou a se importar, inclusive seu primeiro e único amor, Sophia, que havia conhecido no sétimo ano do ensino fundamental.
Tornara-se um niilista, adepto da descrença absoluta.
Em meio aquela fragilidade hostil, a qual foi designado a viver, respirava mal. Cansara-se de seu meio.
Sentia-se oprimido. Mas o tipo de oprimido sem revolta.O pária.
O rei dos sem-situação. Em meio a toda aquela perfeição, o descaso consigo. Gritava. Era tão intolerável a rotineira visão de todos os dias. Que passavam e sempre sem sua ordem prosseguiam.
Em meio a todos sussurros enfurecidos de sua mente, dirigia-se ao espelho, e nada mais deferia ao próprio reflexo do que foda-se.
Não choraria, sabia dos perigos. Jamais sorriria, pois nunca aprendeu.
Havia encontrado a verdade como Mulher.
E como homem, odiava ser controlado por um pinto.
Que raramente não usa a mulher como fuga.
A homogeneidade do barulho e do silêncio deturpava seu raciocínio. Precisava de dinheiro. Precisava pensar. Precisava sair.
Fechou a porta atrás de si, mas antes se lembrou de não esquecer a garrafa de saquê. Um belo gole, longo suspiro. Saiu sem rumo, a porta destrancada.
Subúrbio mal iluminado pelas luzes dos postes, que piscavam provocando zunidos; televisores reluziam na maioria das casas, alienação em massa.
Aquelas pessoas, pensava, mal tinham o que comer, e se deliciavam todas as noites nas festas da alta-sociedade no programa do Amaury Jr. Esqueciam seus débitos, suas doenças, enquanto viviam as aventuras e desventuras da protagonista da novela das oito...
Não suportava a idéia, não conseguia fantasiar, tão densa sua realidade. Seus pés sempre cravados ao chão.
Apalpou os bolsos a procura de seu maço de cigarros.
Restavam-lhe três.
Acendeu o primeiro.
E na tentativa de fugir dos ruídos e pessoas indesejáveis, evitou o centro da cidade, e locomoveu-se às margens.
Caminhou sem ser notado e sem nada notar. Pensamentos obscuros e confusos. A mistura de álcool e analgésicos, essa sim, fazia-se notar.
Caminhou durante aproximadamente uma hora, sem ao menos se dar conta de onde estava indo, e nesse meio tempo esvaziou a garrafa.
Sentiu-se tonto, até então caminhara observando apenas o chão, mas agora sentia a necessidade de levantar a cabeça e tragar mais profundamente aquele ar viciado, mistura de monóxido de carbono com um toque de oxigênio.
Sentiu-se pior. As pernas amoleceram de súbito, mas evitou a queda.
Conhecia muito bem aquele lugar, a rua, o colégio, as calçadas...Durante os últimos anos o havia evitado.
Sua visão se turvou, já não focava lugar algum, perdeu-se dentro de si.
Se por ventura um transeunte qualquer o avistasse naquele lugar, a essa hora deserto, o rosto pálido, seus olhos azul-acinzentados mal seriam notados devido a dilatação exagerada de suas pupilas; daria por certo que nele não havia qualquer sinal de vida, excluso o fato de estar em pé.
Sua mente foi invadida por sons e imagens de outrora.
O mesmo lugar, o mesmo colégio.
Era o dia em que revelaria seus sentimentos, abriria seu coração, e no seu íntimo, sabia que seria correspondido.
Lembrou-se de todo medo e insegurança que sentiu. Preferira escrever uma carta, revelando seus sentimentos à jovem Sophia.
Antes de soar o sinal, posicionou a carta estrategicamente em meio às folhas de seu caderno. Podia ver tudo em câmera lenta...Saíra primeiro...Atravessou a rua...Ficou de frente para o portão.
Ela saiu. O avistou e sorriu. Atravessaria a rua para se despedir...Três passos, algo cai ao chão...
Abaixa-se curiosa, apanha o envelope, reconhece a letra.
È tomada por algum tipo estranho de euforia, enquanto tenta decifrar os garranchos da primeira linha... Sorri...Antes de prosseguir, queria olhá-lo mais uma vez. Ergueu a vista, e teve tempo de ver um rosto cheio de terror, e ouvir um grito desesperado.
Não veria mais nada.
Suava frio, ainda imerso em suas lembranças. Aquele último olhar, expressara mais felicidade do que jamais sentira até então...O sorriso...
O caminhão em alta velocidade fugia da polícia. O impacto e o som que produzira...A mancha de sangue, que se arrastava por muitos metros...O corpo retorcido sobre a faixa de pedestres.
Atirou-se sentado ao chão, justamente como fizera no dia fatídico. Ainda em estado semiconsciente, acendeu seu penúltimo cigarro por reflexo condicionado.
Frenesi caótico de pensamentos...
Choque, dor, culpa, amor, a morte, sangue, sangue, culpa, desespero, fuga, culpa, sem-saída...
Dejà vú. Sentimentos repetidos em um samsara* com o peso de 36 infernos.
O que viria depois?
Imergiu com furor de volta a realidade, como que para fugir de um pesadelo, e como alguém que estava se afogando e consegue voltar à tona, abriu os olhos num suspiro claustrofóbico, o cigarro esvaído em cinzas.
Silêncio.
Inspirou, e teve a impressão de enxergar melhor, tudo parecia mais nítido. Ouvia agora o cantar de grilos, e como cantavam alto!
Sentia-se leve, muito leve, como se tivessem tirado todo o peso da Terra de seus ombros. No auge de todo o declínio, teve a percepção que poucos sábios tem, que ao tocar o fundo do poço, não resta outra saída senão subir.
Percebeu que até então, ele próprio havia sido seu pior inimigo. Criara e alimentara os fantasmas que lhe assombraram todas as noites até então.
Toda a fuga em nada resultara, pois não se pode fugir de si próprio.
Aquela rua parecia-lhe agora como outra qualquer. O fato de tê-la evitado tanto tempo era a origem do mal.
Nascia o dia. Nascera de novo. Levantou-se, sacou seu último cigarro e decidiu que caminharia, mas agora sabia seu destino. Jamais olharia pra trás, aos mortos seu suposto descanso, e a vantagem de não ter de voltar a morrer.
Escolheu viver.
Naquela manhã, renascido das cinzas, caminhou rumo à luz e vislumbrou seu reflexo.
Nada disse, mas pela primeira vez, sorriu.

*do sânscrito, ‘ciclo que nunca pára’.