Rafa acordou tarde demais pra aproveitar tudo o que aquele belo dia de outono oferecia. Já eram quase quatro horas da tarde, e os meninos já deviam estar voltando da caminhada que marcaram na trilha do pico dos urubus, também conhecido como pico 10, o melhor pôr-do-sol de toda a cidade.
Permaneceu ali em seu quarto, sentada em sua cama, fitando o espelho a sua frente. Tinha os lábios ainda vermelhos do vinho barato que havia jorrado noite passada. Como dizia um de seus amigos metido a poeta, "nenhum vinho vem sozinho". Vinho vagabundo, pensou, quase sempre traz é a ressaca moral no encalço, e o bicho pega mesmo no dia seguinte..."É, acho que era isso o que ele queria dizer..."
Mas a noite passada já estava longe, não havia do que se arrepender. Essas noites frias não perdoam, e cada espaço vazio torna tudo mais gelado. Rafa não gostava exatamente das pessoas em geral, mas o calor que vinha delas agradava, e também, elas eram ótimos anteparos diante do vento cortante.
Acendeu um cigarro, e pensou no que faria essa noite, no que faria pra mandar seu pensamento pra longe do caminho ao qual ele sempre acabava se dirigindo. Feito um míssil teleguiado, depois de umas garrafas de mentira del valle, iam direto na direção daquele cara que vivia em uma página já virada. Por vezes sentia raiva de si mesma, e em suas tentativas de entorpecer aquele sentimento que não a abandonava, ("maldita nostalgia!"), ela por vezes acabava mirando e atirando em algum desavisado que cruzasse seu caminho. Isso lhe concedia uma certa liberdade, durante algum tempo, mas logo o interesse se esvaía.
Ninguém ali parecia ter algo realmente importante para dizer. O cigarro se desfaz em cinzas antes que ela se dê conta. "É, não importa quantos desse você fume, eles nunca te deixam inteiramente satisfeita".
Era mais ou menos o que ela pensava em relação aos homens. Por isso, às vezes gostava de brincar com as garotinhas também. Nada sério, curtição mesmo. Às vezes você bebe demais, e quando você percebe, já está dançando em cima da mesa com as garotas, ou trancada no banheiro com a dona da casa. Mas tudo isso passa, e no dia seguinte, é melhor procurar algo pra acordar nessa cidade sonolenta...então depois de um belo banho em ritmo de jazz, ela se arruma, enrola um cigarrinho e sai pra ver o mundo enquanto a noite cai.
Fones no ouvido, ela acende e caminha em direção a cidade. Escolhe o caminho mais solitário, o que significa menos olhares indiscretos e uma menor probabilidade de encontros indesejáveis, a brisa bate suavemente, nos cachos negros dos seus cabelos que se movem no groove dos seus passos, enquanto os últimos resquícios do arrebol se dissipam na imensidão azul marinho do céu.
Suas pupilas dilatadas e olheiras de buraco negro sugam o resto da luz que o dia deixou, e ela caminha tranquila nas sombras. Não importa o que vem pela frente, não importa o que os outros pensam, não, nada disso importa. Tudo está em paz agora, enquanto sua boca seca e seus lábios trincam. Apesar do brilho em seus olhos, a verdadeira fagulha permanece invisível, segura e protegida dentro dela. Apesar das tentativas, nada seria capaz de detê-la.
Outra noite começava, e ela segue caminhando, com sua sede insaciável de vida e vinho.
Um último trago, logo ela teria companhia. Virando a esquina encontrou o poeta caminhando em sua direção, trazia uma garrafa. "Nenhum vinho vem sozinho" os dois disseram juntos, e riram antes do primeiro brinde da noite.
Caminharam abraçados em direção a mais uma celebração.
Comemorariam a inspiração do tédio que possibilita que hajam motivos para celebrar a ausência de comemorações.
Era só mais uma noite fria de outono, mas eles nunca deixam nada passar batido...