Vícios são como aqueles pesadelos terrivelmente recorrentes que te atacam no meio da noite aproveitando-se da vulnerabilidade do sono e da mística da escuridão.
Eu havia me livrado do meu, me mudado para uma vizinhança pacata; com o dinheiro que tinha pude alugar uma pequena casa, que usava para dormir durante o dia, enquanto ocupava-me com minhas leituras pela madrugada afora. Quase nunca saía, tudo parecia correr muito bem.
Até que, em um fim de tarde do inverno passado as coisas começaram a mudar. Havia acabado de acordar, posto a água do café para ferver e fui barbear-me. Com o rosto coberto de espuma, apreciava a quinta de Ludwig Van Beethoven no radinho enquanto retirava a navalha afiadíssima do estojo e iniciava a primeira passada, quando soou alto e claro no meu banheiro um som tuberculoso de tosses consecutivas, uma crise infernal de pulmões desesperados que se revolviam como se quisessem ser cuspidos, como se quisessem um pouco de ar fresco.
Aquilo perturbou-me, e a tensão cresceu quando olhei no espelho e ele olhou-me com aquele olhar de quem sabia o que eu estava pensando, olhar que não via há algum tempo, enquanto um fiapo de sangue brotava em meio à espuma.
Abri o armário, tentando esquivar o espelho, enxuguei o rosto, dispensei a água fervente na pia, vesti-me e saí.
Passei a noite em um prostíbulo, em meio aos gemidos das putas e ao brilho esmeralda do absinto, e absorto, percebi (lembrei?) que as cores e os sons que excitavam-me eram outros...
Pela manhã, ia aproximando-me de casa, quando o vi, velho, caquético, sentado em frente o portão de sua casa, as mãos trêmulas em espasmos dignos de Parkinson, uma delas levava um lenço até a boca e impedia que escarrasse nos transeuntes e abafava aquele som horrendo; cada vez que tossia, parecia que seus orgãos internos trocavam de lugar. A visão embrulhou-me o estômago e a claridade era demais. Cheguei em casa, vomitei, depois um longo banho e cama.
Acordei já era noite, provavelmente a mais fria do ano. Preparei algo para comer e tomei um cálice de vinho. Peguei Dostoiévski na estante, e foi bater o olho nas páginas e recomeçou o terror e já não tentei mais conter meu ímpeto, agora vejo, Matheus estava correto: Quando o espírito imundo sai do homem, anda por lugares áridos procurando repouso, porém não encontra. Não encontra.
Arrumei minhas coisas, separei as ferramentas, guardei na mala, saí e fui direto na direção da casa do ancião. Foi fácil, o portão estava destrancado, sabia que seu quarto era nos fundos. Abri a porta do quarto, ele olhou-me com olhos de terror, esbugalhados, e o susto potencializou sua crise, coff, coof, blearghh, mandei que se calasse, ele murmurava e tossia, eu abri minha mala e peguei minha Bíblia e minha navalha, me joguei em cima dele apoiando meus joelhos no seu tronco sobre a cama, enquanto recitava as últimas palavras que aquele maldito enfermo ouviria antes de se juntar ao Senhor: (...)"põe-se de tocaia nas vilas, trucida os inocentes nos lugares ocultos, seus olhos espreitam o desamparado. Está ele de emboscada para enlaçar o pobre: Apanha-o, e na sua rede o enleia. Abaixa-se e rasteja; em seu poder lhe caem os necessitados. Diz ele, no seu íntimo: Deus se esqueceu, virou seu rosto e não verá isso nunca".
Cortei-lhe a garganta, o som derradeiro, já não parecia uma tosse. Abri-lhe o tórax, extirpei os pulmões negros dos quais escorria uma espécie de suco, fedia a nicotina, pendurei-os no varal, e enquanto observava seus movimentos ao vento, recitei o Salmo 26:6*.
Fui direto à estação de trem, partiria para o Leste. Comprei um maço de cigarros e um café; voltei a ser quem eu era, e inexplicavelmente, sentia-me feliz com isso.
*Lavo as mãos na inocência, e assim, andarei, Senhor, ao redor do teu altar.
Eu havia me livrado do meu, me mudado para uma vizinhança pacata; com o dinheiro que tinha pude alugar uma pequena casa, que usava para dormir durante o dia, enquanto ocupava-me com minhas leituras pela madrugada afora. Quase nunca saía, tudo parecia correr muito bem.
Até que, em um fim de tarde do inverno passado as coisas começaram a mudar. Havia acabado de acordar, posto a água do café para ferver e fui barbear-me. Com o rosto coberto de espuma, apreciava a quinta de Ludwig Van Beethoven no radinho enquanto retirava a navalha afiadíssima do estojo e iniciava a primeira passada, quando soou alto e claro no meu banheiro um som tuberculoso de tosses consecutivas, uma crise infernal de pulmões desesperados que se revolviam como se quisessem ser cuspidos, como se quisessem um pouco de ar fresco.
Aquilo perturbou-me, e a tensão cresceu quando olhei no espelho e ele olhou-me com aquele olhar de quem sabia o que eu estava pensando, olhar que não via há algum tempo, enquanto um fiapo de sangue brotava em meio à espuma.
Abri o armário, tentando esquivar o espelho, enxuguei o rosto, dispensei a água fervente na pia, vesti-me e saí.
Passei a noite em um prostíbulo, em meio aos gemidos das putas e ao brilho esmeralda do absinto, e absorto, percebi (lembrei?) que as cores e os sons que excitavam-me eram outros...
Pela manhã, ia aproximando-me de casa, quando o vi, velho, caquético, sentado em frente o portão de sua casa, as mãos trêmulas em espasmos dignos de Parkinson, uma delas levava um lenço até a boca e impedia que escarrasse nos transeuntes e abafava aquele som horrendo; cada vez que tossia, parecia que seus orgãos internos trocavam de lugar. A visão embrulhou-me o estômago e a claridade era demais. Cheguei em casa, vomitei, depois um longo banho e cama.
Acordei já era noite, provavelmente a mais fria do ano. Preparei algo para comer e tomei um cálice de vinho. Peguei Dostoiévski na estante, e foi bater o olho nas páginas e recomeçou o terror e já não tentei mais conter meu ímpeto, agora vejo, Matheus estava correto: Quando o espírito imundo sai do homem, anda por lugares áridos procurando repouso, porém não encontra. Não encontra.
Arrumei minhas coisas, separei as ferramentas, guardei na mala, saí e fui direto na direção da casa do ancião. Foi fácil, o portão estava destrancado, sabia que seu quarto era nos fundos. Abri a porta do quarto, ele olhou-me com olhos de terror, esbugalhados, e o susto potencializou sua crise, coff, coof, blearghh, mandei que se calasse, ele murmurava e tossia, eu abri minha mala e peguei minha Bíblia e minha navalha, me joguei em cima dele apoiando meus joelhos no seu tronco sobre a cama, enquanto recitava as últimas palavras que aquele maldito enfermo ouviria antes de se juntar ao Senhor: (...)"põe-se de tocaia nas vilas, trucida os inocentes nos lugares ocultos, seus olhos espreitam o desamparado. Está ele de emboscada para enlaçar o pobre: Apanha-o, e na sua rede o enleia. Abaixa-se e rasteja; em seu poder lhe caem os necessitados. Diz ele, no seu íntimo: Deus se esqueceu, virou seu rosto e não verá isso nunca".
Cortei-lhe a garganta, o som derradeiro, já não parecia uma tosse. Abri-lhe o tórax, extirpei os pulmões negros dos quais escorria uma espécie de suco, fedia a nicotina, pendurei-os no varal, e enquanto observava seus movimentos ao vento, recitei o Salmo 26:6*.
Fui direto à estação de trem, partiria para o Leste. Comprei um maço de cigarros e um café; voltei a ser quem eu era, e inexplicavelmente, sentia-me feliz com isso.
*Lavo as mãos na inocência, e assim, andarei, Senhor, ao redor do teu altar.
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