quinta-feira, 19 de novembro de 2009

01:36

seu silêncio me dá vontade de gritar
mas meu grito silencia
mais um trago engolido à seco
mais um sopro calado
outro poema suprimido.

dorflex, i love you so

Desperto por volta das oito da manhã
faz um dia lindo de primavera lá fora
mas no momento isso não importa
me levanto desnorteado e rumo à cozinha
uma dor lancinante percorre meu rosto
como se houvesse uma faca cravada em meu
maxilar, mas não há nada
eu abro o armário e minhas mãos trêmulas
reviram vasilhas e taplewares em busca
de analgésicos
encontro, engulo um que desliza junto
com um pouco do café de ontem
acendo um cigarro enquanto ando em
direção ao espelho, me olho
sinto medo e nojo e raiva e dor
ao notar minha face direita inchada
recheada pelo pus entumescido
inflamada
e pulsando, pulsando
pulsando.
Ando de um lado a outro sem parar
a vontade real é de ver tudo foder
quebrar, estremecer e sangrar
o instinto é o de gritar, espremer
arrancar, mas nada faço
só ando e penso penso penso
que a culpa é toda minha e isso me deixa pior
não poder culpar ninguém pela minha
degradação. Fico tenso. Outro analgésico
outro cigarro, evito o espelho porque
se eu olho dói mais além.
Ligo pra minha dentista, preciso vê-la urgente
ela marca comigo pras onze
eu fico esperando a hora passar
ela passa doendo, eu saio
chego no consultório mais monstro que gente.
Ela é bonita e simpática e me olha serena
não se importa que eu pareça o Fofão
enquanto diz que vai me apertar até
que todo o mal desapareça e eu consinto
ela falando com aquele sorriso
não parece nada mal, não
me sento em sua cadeira reclinável
a luz branca apontada pra mim
e ela começa, com sua seringa cheia
daquele líquido adorável
me encharca, anestesiado eu me sinto bem
então ela me aperta e aperta forte
eu fecho os olhos e espero ela terminar
e ela termina e eu pergunto
“foi bom pra você”?
Ela diz, “o quê”?
Eu digo, “nada”
então ela me mostra um copo de plástico
cheio de um liquido amarelo escuro
espesso
ri e pergunta se estou servido
mas eu declino, agradeço e me retiro
no corredor observo meu reflexo
que incrivelmente se parece comigo
me sinto um tolo feliz e mais leve
meu rosto formiga de um jeito engraçado
acendo um cigarro e caminho por aí
ninguém parece se assustar
não há sobressalto
apenas uma brisa leve
de um lindo dia de primavera
eu, e meu sorriso torto
anestesiado.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Volta.

minha mãe levanta a cabeça do colchão
me manda dormir
não vê que tento me redimir
escrevendo essas linhas depois de meses
de Pura paralisia literária
ela diz isso e volta a sonhar
eu fico aqui tentando espantar a catarse
remover o mofo acumulado nos meus versos
injetar nova energia
explorar outros universos
e toda essa doença instalada
já não me aterroriza
se ainda me resta poesia
e quando me perguntam o que faço
eu logo digo: nada
pois se digo que atuo e escrevo
pensam na hora que sou vagabundo
há algo de errado com esse mundo
ao menos nessa parte
artistas não são putas
nem santos, nem mártires
talvez heróis loucos
irremediavelmente apaixonados pela arte.
é difícil ser escritor
há de se ter coragem, insistência
persistência, paciência e
alguns cigarros pra queimar, enquanto tento
dispersar o branco da folha que me esvazia
a mente quando toco o caderno.
não sou obsessivo. até gostaria.
cismar de me trancar no quarto e só
sair quando escrever algo decente.
mas isso seria perigoso, talvez morresse de fome
antes de vomitar uma pérola. mas a dificuldade inspira.
se fosse fácil eu nem tentava.
bloqueio criativo é como um câncer.
se você não faz nada ele cresce e se alastra.
metástase que come inspiração à la pac-man
até que nada mais reste fora o branco
e o som do vazio.
então você tem de escolher.
abraçar o silêncio enquanto as folhas amarelam
ou gritar com tinta antes que todos se esqueçam.
agora me lembro.
sim, eu já escolhi.

sábado, 25 de julho de 2009

Eco.

depois do silêncio...você sabe.
vem o estrondo.
e vem de dentro. vem das vezes que implodi.
dos monstros que engoli.
das catástrofes que não causei
por pensar duas ou três vezes, olhar os tacos e as bolas
e janelas
e as pessoas que esperavam pra ver o que eu faria
sabendo o que eu queria e temendo por isso.
e neguei a todos, pra sofrer sozinho.
acendi cigarros pra apagar incêndios internos.
observei o céu, pra ter noção de distância.
e desejei não me lembrar. triste isso.
e comecei a caminhar...pensava blues.
afundei no asfalto.
talvez tenha derrubado uma lágrima, que se dissolveu na poça.
e me odiei, tanto quanto te amei.
mas a noite seguia. apenas deslizei, ladeira acima.
me perdi de propósito, pra ignorar vestígios.
mas cada paralelepípedo me dizia que não poderia fugir.
sentei, chorei e ri.
não há fuga, não de ti.
ainda aqui. ainda...

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Down.

Eu não sei o que o meu corpo abriga
Nestas noites quentes de verão
E nem me importa que mil raios partam
Qualquer sentido vago de razão
Eu ando tão down
Eu ando tão down

Outra vez vou te cantar, vou te gritar
Te rebocar do bar
E as paredes do meu quarto vão assistir comigo
À versão nova de uma velha história
E quando o sol vier socar minha cara
Com certeza você já foi embora
Eu ando tão down
Eu ando tão down

Outra vez vou te esquecer
Pois nestas horas pega mal sofrer
Da privada eu vou dar com a minha cara
De babaca pintada no espelho
E me lembrar, sorrindo, que o banheiro
É a igreja de todos os bêbados
Eu ando tão down
Eu ando tão down
Eu ando tão down
Down... down


é...cazuza.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Implícito.

Se penso é porque dói e se escrevo é porque tá me machucando e se eu estou dizendo é porque você está cutucando a porra da ferida, e se então eu me calo, é porque eu realmente cansei de sangrar por você.

(...)

A Esfinge e sua sentença maldita. E eu, ando milhas e milhas e milhas, e sempre caio nesse corredor. Eu não sou o único. Ninguém foge de si mesmo. O passado nem sempre é tão distante e o sabor de um bom café logo se esvai.

A pergunta ainda ressoa, silenciosa, aqui dentro. Pode ouvir? Quer ver?

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Sobre meninos e deusas

Despertou como se houvesse despencado de um penhasco direto em sua cama. Pode ouvir uma espécie de estalo, como se sua alma estivesse mesmo muito longe, e fosse tragada de volta violentamente, atravessando qualquer tempestade ou arranha-céu ou parede que os separasse para cair novamente naquele corpo franzino, que dormia sonhos intranquilos no cômodo escuro. Talvez ela não tivesse realizado um encaixe perfeito, depois do pouso forçado, ou talvez aquela sensação estranha que ele sentia se devesse apenas aos sonhos tumultuados em imagens muito rápidas e vertiginosas, que ora o remetiam à acontecimentos de sua infância, ora lançavam imagens surreais de antigos deuses que vinham cobrar-lhe algo que nunca soubera que devia, fazendo-o alucinar cenas de castigo e danação eterna. Dessa vez foi Kali, assustadora com seus três pares de braços, armada até os dentes e sedenta por destruição, quem veio assombrá-lo.

Sentou na cama, limpando o suor da testa com as mãos, respirando fundo e olhando ao redor para reconhecer a mobília do quarto, para certificar-se que acordara exatamente onde dormira. Provou uma vez mais aquela sensação estranha e gratificante de estar vivo, e tirou os pés descalços da cama, tocando o chão frio. Ainda estava escuro e ele não sabia que horas eram. Não podia saber o que esse dia lhe reservava. Não se daria conta até o ultimo segundo desse dia, que poderia ser apenas mais um, mas seria o efêmero. O mais belo e estranho deles. Também seria o último.

Banhou-se demoradamente, repassando mentalmente tudo que diria na reunião marcada para as nove da manhã com o diretor de cultura do município, na qual trataria sobre a restauração do antigo Cineteatro da cidade. Estava até certo ponto confiante e um pouco ansioso. Havia trabalhado durante meses redigindo o projeto, distanciando-se de amigos e de seus próprios projetos, empenhando tempo e até mesmo um pouco de seu pouco dinheiro nesse sonho, que não era apenas seu. Lembrou-se das tantas sessões que acompanhara ao lado de sua mãe, que trabalhou durante muitos anos na bilheteria, antes de perder a saúde e ter de se afastar.

Já havia amanhecido quando passou sua roupa e engraxou os sapatos. Escolheu sua gravata amarela, presente que recebeu de sua mãe quando completou 15 anos. Ela dizia que realçava seus olhos. Ele a usara apenas duas vezes até então; a primeira na formatura do ginásio e a segunda no funeral da mãe. Nas duas ocasiões, quem reparou naqueles olhos, saberia que ela estava certa.

No horário marcado ele estava lá. Aguardando do lado de fora da sala, fitava a porta fechada. Depois de cerca de quarenta minutos, a secretária pediu que ele entrasse. O diretor estava sentado à sua mesa, com seu porte avantajado espalhado na cadeira, careca lustrosa e bigode impecável.

- Sente-se, meu jovem, disse ele ajeitando-se.

- Claro, obrigado, ele respondeu, sentando-se à frente do homem.

- Pois então, você disse que queria mostrar-me algo, fique à vontade, disse o diretor, fingindo interesse.

- Sim, sim, eu vim porque escrevi um projeto que visa a recuperação do antigo Cineteatro, que é um patrimônio da cidade e que foi abandonado, por que não dá uma olhada?, disse, entregando uma pasta ao diretor.

Olhava com expectativa, mas não demorou muito para ter certeza de que o que mais temia iria acontecer. Ele nem abriu, não leu uma linha, apenas segurou a pasta com aquelas mãos inchadas, gesticulando e falando com aquele olhar que transpassa sem nada notar. Começou dizendo que era uma questão deveras complexa e que na atual conjuntura, aquilo não estava nos planos e que não haveria como pautar aquilo no momento, pois haviam outras prioridades, e nessa altura o jovem rapaz já não conseguia ouvir o que ele dizia, mas já sabia de cor o que ele diria e sabia que era irreversível, só conseguia olhar para a pasta que balançava entre aqueles dedos e o suor que brotava daquele bigode e para a luz que refletia naquela cabeça, olhou em volta, para a porta, sentindo-se nauseado, quase nocauteado por aquela verdade podre na qual nunca quis acreditar, mas que sempre estivera ali.

O diretor ainda falava quando ele pediu licença e saiu da sala sem olhar para trás. Afrouxando a gravata para conseguir quem sabe um pouco mais de ar, deixou o prédio da prefeitura, sentindo ainda aquela coisa presa entre o peito e a garganta, que pulsava, pulsava e não saía. Não saberia explicar, não era apenas raiva ou desapontamento ou tristeza, revolta, inconformismo. Talvez fosse tudo aquilo, talvez fosse apenas o vazio enorme que sentia, que pesava tanto. Talvez a revelação de que seu sonho estava morto doesse muito mais do que correr uma vida inteira na esperança de alcançá-lo. Era fato.

Andou desnorteado até a praça da cidade, e naquela manhã de fim de inverno, o vento frio soprava constante, fazendo voar pétalas amarelas de flores precoces que morriam antes da primavera e passavam por ele em rasantes e rodopios loucos antes de esvoaçarem novamente em outras direções. Sentou desolado num dos bancos, observando aquele microcosmo que todos os dias povoava aquele lugar; os velhos que trocavam relógios e as crianças que olhavam fascinadas o chafariz e os bêbados que buscavam a cura de suas abstinências e o esquecimento de suas tragédias, e os pombos...

Pensou naquela cidade que nunca lhe dera motivos para se orgulhar, e em como tinha vindo parar ali, e em como uma sucessão de acontecimentos aleatórios, na vida de seus pais e na vida dos pais dos seus pais, haviam levado a outros tantos fatos, que o levariam até aquela praça, naquele dia. Já havia ouvido falar no Devir dos gregos arcaicos, o fluxo contínuo de transformação da vida, só não havia conseguido a fórmula mágica para sincronizar num instante supremo o seu desejo pessoal com o desejo universal dos acontecimentos.

Sentiu como se houvesse perdido a chance, e nunca soube que ela nunca existiu, não ali.

Resolveu fazer uma nova visita a seu refúgio favorito, o antigo Cineteatro. Também não poderia prever o iminente encontro que teria com seu Destino, não poderia. E quando começou a caminhar lentamente até os acontecimentos, o fez olhando os próprios passos, não poderia notar os presságios no céu, que agora tinha nuvens mais densas que se aproximavam umas das outras sobre a cidade, enquanto ele seguia imerso em seus pensamentos sorumbáticos repletos de perguntas pertinentes e sem respostas.

Passou pela velha fachada, empoeirada, em direção à entrada lateral, antiga saída de emergência. Cenas antigas lhe passavam pela cabeça, fantasmas de antigos expectadores passavam por ele, que quase podia sentir o cheiro que aquele lugar tinha, há dez anos atrás.

Entrou pela porta dupla de metal e contemplou o palco vazio, tomado de poeira, e depois as poltronas vermelhas que se estendiam até o fim do corredor. Estava mais escuro do que de costume, àquela hora da manhã o sol já havia desaparecido por detrás dos cumulos nimbos, então resolveu caminhar até a sala do projetor, onde guardava alguns pacotes de velas que usava para iluminar o local quando trazia alguns amigos para saraus secretos durante as madrugadas.

Foi quando ouviu um clique, como de uma câmera. Subiu um lance da escada, devagar. Seu coração batia forte e devagar, como que para não fazer barulho. Já havia acontecido de encontrar moradores de rua vagando por ali uma ou outra vez. Decidiu se manifestar, tentar contato.

- Hey, tem alguém aí em cima?

Silêncio na sala.

Ele foi subindo lentamente, até que viu uma silhueta nas sombras.

- Olá?! Disse, tentando estabelecer contato com a sombra, que fez um movimento, como se fosse sacar algo do bolso, o que de fato fez. O movimento o fez paralisar, e congelado, esperou o pior. A sombra que havia sacado algo do bolso, agora esticava o braço em sua direção, apontando-lhe o que supôs que fosse uma arma, supôs não, teve tanta certeza que fechou os olhos para não ver. Depois ouviu um clique e sentiu a luz tocar-lhe o rosto. Como nada doía, decidiu abrir os olhos, então viu que a sombra apontava-lhe uma lanterna.

Começou a rir nervosamente, aliviado, e sentindo-se meio bobo. Olhou para a sombra e disse: - Achei que ia morrer agora! A sombra riu e disse: - Me desculpe, não queria assustá-lo, mas é que me assustei também! E quando ele começaria a imaginar que feição aquela voz de garota tinha, ela iluminou o próprio rosto com a lanterna, como que naqueles filmes de terror, mas o que ele viu não era nada aterrorizador, pelo contrário. Era linda. Bem branca e de cabelos bem curtos, tinha uns olhos que não achavam um consenso entre verde e azul, e que o olhavam cheios de curiosidade. E tinha algo que parecia uma câmera fotográfica pendurada no pescoço.

Ele disse à ela que achava que só ele gostava daquele lugar, e ela disse o mesmo. Ela disse que vinha às vezes fazer umas fotos, e que achava uma pena um lugar daqueles estar abandonado. Disse que se sentia tão abandonada quanto, por não ter um teatro para poder ver os filmes e as peças que adorava. Ele acendeu algumas velas, ela acendeu um cigarro e eles conversaram sobre teatro e cinema, filosofia e tédio, política e poesia. Ele contou sobre o que aconteceu mais cedo naquela manhã e ela indignou-se. Ela lhe contou aventuras do tempo da escola e ele riu. Descobriram que foram vizinhos quando crianças, e acharam absurdo não terem se conhecido antes. Ele criou diferentes iluminações com as velas nos corredores e no palco e ela fez fotos ótimas.

Conversaram como velhos amigos, trocaram confidencias. Ele falou sobre a falta que sentia da mãe, e ela confessou que odiava o pai. Enquanto isso, a roda do destino seguia no seu pique incessante rumo ao inexorável. Eram por volta das 1:30 da tarde e o céu já estava escuro, quando os primeiros trovões puderam ser ouvidos.

Ele nunca havia se sentido tão bem, e tão disposto a falar com alguém como acontecia agora, com aquela garota, e enquanto a ouvia falar, sentia uma sensação estranha, como se algo formigasse dentro dele, e as mãos suavam sem motivo aparente. O coração batia numa levada inédita e cheia de ritmo. As palavras saíam com enorme facilidade, sem pensar, como se fossem feitas pra ela. Aquele lugar que seria a suposta sepultura de seu sonho, tornara-se diferente, era agora o local de nascimento de uma nova vontade de viver.

Mas de repente, depois de tanto conversarem, houve um hiato, e veio o silêncio. Ela o olhava com seu jeito de perguntar sem nada dizer. Ele respirou, e olhando para a vela que estava entre eles, perguntou a ela qual havia sido a última vez que se apaixonara por alguém, e só então a olhou nos olhos.

Ela abraçou as pernas flexionadas contra o corpo, e olhou para o buraco no teto do prédio, e nesse momento ele pensou ter estragado tudo por ter sido afoito e não se conter o bastante. Então ela voltou seu olhar para ele, e esticando uma das pernas concluiu: - Há mais ou menos umas duas horas...

Ele enrubesceu de excitação e seu coração parecia que ia explodir, mas ele ainda a olhou e perguntou por quem e ela riu e deixou-se cair de costas no palco. Essa foi a deixa para que ele a beijasse e a introdução dos momentos eternos que se sucederam, e que seriam o mais próximo que ele chegou da divindade, o mais próximo que chegou de ser completamente feliz. A garota tinha nome de Deusa egípcia, chamava-se Ísis.

Alheio àquela aura de amor e mágica, o céu lá fora se transformava num teto de concreto, prestes a desabar. Os trovões ouvidos lembravam bombas de guerra, e a todo instante pipocavam flashes de luz, como se fosse um aviso, um toque de recolher.

Ísis precisava ir embora, lembrou-se de que havia marcado de buscar umas fotos, então despediram-se longamente, em meio à promessas de encontrarem-se novamente e trilhar um caminho juntos. Ele acompanhou-a até o lado de fora, e observou-a caminhar até sumir de vista, o que não aconteceu sem que ela olhasse uma última vez e sorrisse o sorriso mais bonito e terno do mundo.

Quando dobrou a esquina, ela parou um instante e encostou-se numa parede, fechou os olhos e inspirou um longo trago de ar úmido, sentindo-se banhada de vida por dentro. Tocou os lábios com os dedos, estimulando a memória recente dos beijos cálidos cheios de ânsia e paixão, e pensou que se o mundo inteiro se sentisse como ela naquele instante, qualquer forma de maldade seria sem sentido e necessidade. Sentia que amava a todas as coisas, e seus medos todos haviam evaporado e se transformado em algo forte como a fé, subindo aos céus como preces doces de agradecimento.

Ele havia olhado o céu escuro uma última vez antes de entrar, recolheria as velas e depois sairia. Enquanto fazia isso, pensou nos rumos tortos do destino, que nos ludibria a todos quando faz coisas realmente ruins acontecerem em nome de um bem maior posterior.

O Destino, ou seja lá o que controle as engrenagens complexas da existência, já tinha um plano traçado e todos os instrumentos à mão. Era chegado o momento, e uma pancada de chuva escorregou das nuvens pouco depois da garota decidir voltar para os braços do rapaz com nome de menino brasileiro, que soava suave aos seus ouvidos. Caê.

Por mais que ela corresse, não chegaria a tempo. Estava ela também inclusa nas linhas invisíveis que estavam sendo escritas sem que ninguém soubesse.

Já havia guardado as velas quando ouviu o som da chuva que molhava a garota e a cidade, e no corredor rente ao palco tinha a visão distante do portão externo que se abriu. Alguém caminhava rumo à entrada, parecia ela, mas não podia ter certeza por causa dos relâmpagos sucessivos, que davam aquele efeito de discoteca, quadro a quadro, passo a passo cada vez mais perto.

Ela chegou a três passos da porta e sacou a lanterna para iluminar o salão escuro, logo o viu e piscou a luz três vezes. Vendo a luz então ele teve certeza e caminhou para ela. A três passos da porta ele parou e a olhou sorrindo, ela também sorriu parada e tudo isso durou uns três segundos.

Ele abriu os braços e ela deu um passo na direção dele, e nesse momento um relâmpago os cegou, e o que se seguiu foi um estrondo muito próximo, e uma nuvem de poeira que a engoliu sem mastigar.

Após momentos de pura confusão, ela pode abrir os olhos e verificar que o que antes era a porta e todo o espaço do palco e das primeiras fileiras era agora um amontoado enorme de entulho e escombros, e sem conseguir se mover gritou tão alto que momentos depois os vizinhos do local já a amparavam em estado de choque, enquanto telefonavam para o resgate.

Encontraram-no horas depois, sem vida.

Ela não foi ao funeral, sempre preferiu conservar a imagem viva das pessoas. Pensava que seria como admirar o casulo ao invés da borboleta. Os primeiros meses após o incidente foram muito difíceis, mas serviram para que ela se reaproximasse de seu pai, melhorando muito a relação antes conturbada entre os dois.

O pai dela era um empresário muito bem sucedido, e um ano depois, ele encontrou o antigo projeto de reabilitação do Cineteatro, escrito pelo garoto, e ele e Ísis juntaram energias e captaram recursos, e mais um ano depois o re-inauguraram, e batizaram-no com o nome do rapaz.

Com isso, mais um ciclo havia se fechado e a vida seguiu seu curso. Em algum lugar, ele sorria satisfeito ao lado de sua mãe, agora com a compreensão plena de que havia escolhido dessa forma. Os dois agora olhavam por Ísis, que dedicava sua vida à arte e a cultura, e que todos os dias antes de dormir lembrava dele e se perguntava porque das coisas terem acontecido assim.

Um dia ela saberia.

 

quinta-feira, 14 de maio de 2009

O Inferno Contra-Ataca

não sei se o mundo reflete meu cinismo
ou se sou o próprio reflexo
ainda me pego perplexo
sob o colateral da verdade que contra-ataca
sem piedade no meu imo
e quanto mais me aproximo
mais me perco do caminho
e mesmo se me acompanham
no final estou sempre sozinho
sempre.

terça-feira, 24 de março de 2009

Karma knockout

Não não não não


É apenas negação

Karma knockout

Outro beijo no chão.

Eu continuo morrendo

Ele continua correndo

Ela segue sentindo.

Estamos todos vivendo

De que?

Quase sempre mentindo.

Não não não

Paliativos

Sem solução?

Ainda é outono

Ele quer verão

Ela quer inverno.

Eu quero cores

Não flores

Nem as delicias do Inferno.

Não, não

Meus amores

Nada aqui parece eterno


Nessa egotrip

Somos efêmeros atores

Autores e diretores


E mesmo com o roteiro na mão

Nem tudo se resume

À luz, câmera e ação.

Não.

Nem tudo é de mentira aqui

Nem tudo é tão real

Nem tudo é negação.

Incendiemos então

Tudo e todos

Que nos tornemos cinzas


Se não for em vão.

sábado, 21 de março de 2009

Equinocio

Qual sera o peso desses sentimentos que me pressionam pra sair

Que não se aguentam dentro de mim

Que me apertam a garganta como grito preso

Que partem do misto de impotência

Vontade imobilizada que acaba em automenosprezo

O que de fato então mereço?

Se não me sinto leve, nem muito livre

Apenas solto.

Se me sinto menos

Como posso ser mais?

Que variável estranha e insensata

Nos mantém distantes

Desprotegidos e fora

De nosso próprio alcance

Em pleno equinócio

Já não me importam as horas

Se sem o que me falta

São todas corroídas pelo ócio

São rascunhos toscos que sempre jogo fora.


Agora eu ando contra o vento

Enquanto as folhas morrem

As crianças correm inocentes

Enquanto as flores morrem

E os velhos dormem tementes

O vento desolado sopra versos pra mim

Como se fossem sementes férteis

Como se isso não fosse ter fim.

quarta-feira, 11 de março de 2009

Ilusionismos.

lá fora choveu o dia todo, e talvez a cidade 
esteja abaixo da linha da lama
aguaceiro que não lava a alma
o céu fechado para balanço
não recebe preces
apenas as derrama

sem calma.

aqui dentro, um pouco mais seco
algo meio calmaria
meio tormento
sempre fui todo sentimento
será uma pena
será que valeria? 

hei de ficar atento.

e quando a primeira chance passar
agarrá-la, pedir que me leve
já não posso esperar
os ponteiros jamais perdoam
quem se ilude
quem se pensa imune

quem se acha doente demais pra dançar.

eu quero correr
pode ser para o mar
para as montanhas
pra uma clareira de luar
prateada e quente quanto
corpos que ardem na eternidade do momento

que nem a morte os poderia tocar.

minhas fantasias me carregam
e me despem de mim
que doce e amargo privilegio
enchem-me de ilusões
para livrar-me do tédio
como se houvessem inventado poesia

para poetas doentes, como se fosse um remedio.

Summertime.

Tenho uma séria queda pela vida
Em múltiplos sentidos e
Matizes
Contornos
Contrastes

Sorrisos
Perspicácia
Inteligência
Tudo isso me atrai muito
Me faz querer correr um pouco de risco

A velha sensação de estar vivo
Você se lembra?

Sou dionisíaco e amante da noite e um pouco prolixo
Ultimamente, contemplativo, praticamente casto
Cumulus-Nimbus
Café e
Um silêncio devasso

Um pequeno caos
O meu Dharma obscuro, absurdo
Meu centro gravitacional por vezes se inverte
E vejo velhas coisas com novos olhos

Verdes
Roxos
Castanhos
Diferentes cores, nuances, texturas
Pensamentos antigos refletindo em ações futuras

Como se pudesse planejar
Como se fosse possível entender

Abstraio
Confundo
Questiono
Conquisto coisas sem querer às vezes
E perco outras por quere-las demais

O grande senso de humor do Universo
No budismo, samsara
Pra igreja, castigo
Pros pagãos, a natureza
Eu, costumo chamar de ironia

Enquanto isso, segue o grande baile da existência
Em essência, nossa eterna busca não passa de um acorde
Que vibra e sacode e se propaga, contribuindo
Para que tudo mantenha um certo ritmo
Algum compasso e sincronia, uma big band

Um big bang, o grande orgasmo divino
Devaneios displicentes
Obscenos
Incertos como o Destino
Certeiros como bala perdida

Sinceros como um tiro, esses rabiscos
É certo que menos destrutivos
Talvez mais doloridos
E menos tristes que aquele velho blues
Sobre o céu de verão

Branco e cinza
Sem Sol
Sem azul
Apenas luz, claridade fosca
Ofuscante

Sinto aromas distantes
No tempo
No espaço
Bem perto, me despertam
Lembram maresia e morangos

Tempestade iminente

Folhas verdes ao chão

'There ain't no cure, baby

For the summertime blues'.


*mais um dos velhos, mais um fim de verão.

segunda-feira, 9 de março de 2009

e só.

é apenas uma segunda
mas o céu
o céu está além do véu de nuvens
que derramam pesadas gotas
enormes lágrimas celestiais entre
soluços de trovoadas
as arvores se remexem como numa dança
como num ataque de espasmos
talvez voassem, talvez
se não estivessem presas, se não soubessem
ter raízes.

e como um galho solitário
eu ocupo a casa
balançando entre cômodos vazios
espaços deixados vagos
na mesa o maço de cigarros
apenas quatro
na embalagem que exibe um rato
morto, muito simpatico
vou acender um, preciso de um trago
em cima da geladeira há uma garrafa de cachaça
que me olha
tenta parecer atraente, o liquido estatico
e quente
tenta parecer uma boa ideia
e me lembrar dos tantos dias tortos
que consertei me fazendo torto tambem
mas não

eu só quero amor e arte

nem que seja em doses homeopaticas
mesmo que seja dolorido como sempre foi
ou que digam que já é tarde
eu só quero ela

eu só quero amor e arte.

sábado, 7 de março de 2009

sexta-feira, 6 de março de 2009

Aos Olhos de Aya.

alguns aqui se dopam por falta do que fazer
outros pelo excesso 
e outros sem motivo mesmo
ladeira abaixo, adrenalina em cima
um mar de refugiados de si mesmos
e eu que estava ilhado, tento fugir da inundação
me manter sóbrio, me manter são
nesse manicomio.
- essa camisa de força não é minha!
então me perguntam o que faço aqui
eu não consigo responder, engulo duas pilulas
e saio dando autografos pros mais chapados que eu.
mas não era pra ser assim, será que eu sou assim?
confetes, eu quero confetes pra mim
quem sabe eu desperte, ou me lembre
que não sou aquele monstro na lista dos mais procurados
e nem aquele niilista do caralho
viciado dos viciados, filha da puta sem alma
comedor de filha alheia, louco
e mal amado
esse não pode ser eu, não pode.
e mesmo sabendo disso fui convencido
fui vencido pela exaustão
e as mentiras mil vezes repetidas ecoaram
três mil vezes 
e fez-se a verdade
forjada em brasa, embebida em veneno
liquefeita, injetada e absorvida. pronto.
nem ardeu, foi esquecida logo
como se fosse parte de um plano superior
um tsunami de torpor.
mas no quarto acolchoado, entre uma dose e outra
existem delirios lúcidos
de ego espatifado e espírito de calamidade
e aquela fresta de verdade
aquela fresta
pode trazer à luz o esquecido 
e iluminar o fodido mais infeliz da cidade
e se conseguir forças para acreditar
aquela fresta, se tornará maior
e logo poderá atravessar e retornar
voltar a ser o que sempre foi
muito melhor talvez, aos olhos de Aya
aos olhos no espelho e aos olhos do mundo e aos olhos do todo e não mais haverá cegueira não mais haverá tortura só haverá caminho e a certeza de que não estamos sozinhos.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Mentiras Sinceras

*ao som de Venus in Furs - The Velvet Underground.

Sorriu admirado observando a chama verde dançar no copo sobre o líquido azul, e quando a pressão sugou sua mão, ele o girou três vezes suspenso no ar antes de sugar toda a bebida sem deixar o gás se dissipar. Inalou-o envergando a coluna e deixando a cabeça pender para trás. Todos observavam, à luz do televisor que exibia uma lista de músicas.
Algumas pessoas no sofá, outras no chão. Do outro lado da sala, de pé, rente à parede ela o mirava com expectativa e excitação enquanto balançava o corpo hipnotizado, no ritmo da música.
Ele endireitou-se lentamente e abriu um sorriso azul de criança satisfeita, soltando o ar devagar pelas narinas, olhos meio mareados. Cantarolou sem som com a música...Different colors, made of tears...Ainda ouvia os ecos. Jogou o copo, alguém agarrou e serviu uma dose, ele caminhou para ela.
Ela adorava aquela música e algumas daquelas pessoas, não todas. Especialmente ele. Foi rápido. Ele fazia teatro, ela cantava no coral. Ele lhe apresentou Kerouac, ela retribuiu com Billie Holiday. Vodca. Café. Equilibravam-se. Ele entregava-se, ela se continha. Loucura e segurança, o abraço perfeito.
Agarrou-a pelo braço trazendo-a pra perto, rodopiando uma vez como numa dança e roçando a ponta fina de seu nariz subiu-lhe pelo pescoço, algo se remexia dentro dela; sentiu vontade de gritar, mas apenas o apertou com mais força nas costelas. Ele disse "Eu amo esse cheiro" e ela o apertou mais forte contra si e quis dizer que amava seu sorriso ou quando a tocava ou lhe dizia algum poema. Queria sentir seus lábios, queria...
Disse apenas "Eu sei", forçando um sorriso gentil e foi sentar-se no chão, pegando o copo e o isqueiro. Ele ainda de costas inspirou e engoliu a seco o nó na garganta, ela virou a dose. Ele acendeu um cigarro, fitando o céu pela janela que era uma pintura; a Lua minguante, no céu de inverno sem nuvens.
De fato, amavam-se, mas optaram por nunca destruir aquilo dizendo a verdade.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Céu de Vidro.

A cada dia que durmo
E a cada noite que desperto
Eu provo um pouco do veneno do mundo
Parece me levar pra longe

Me faz sentir deserto

Mas é certo que tudo ainda existe
E que algo aqui dentro ainda brilha e resiste
Mesmo que lá fora pareça escuro e um tanto incerto
Precisamos sair pra ver se é seguro

Sermos quem somos sem máscaras, barreiras ou muros

Nada como agora, como que presos
Ao sistema, à vontades alheias
Ou em nós mesmos
Nada à ver com esse vício

Essa maldita cultura de alienação e desperdício

Mas tudo simplesmente continua
O tempo que corrói
O que me nutria, que ainda me destrói
E o vazio que preencho com vinho e noites de lua

Poesia em papel de bar, atividades noturnas

E pela manhã eu descanso e te esqueço
Enquanto a brisa bela sopra as folhas verdes
Eu adormeço e sonho com tempestades de gelo
E olhares escuros de lentes negras e mãos ausentes

Um arrebol exangüe, deveras transparente.

Domingo, de noite.

Era domingo e quando acordou já era noite. Dormira pelo menos umas 15 horas, pra compensar as 46 que atravessou sem descanso.
Sonhara pesadelos todo o tempo; quando dormia assim, em demasia, era atacada pelo seu estoque de fobias. Aracnídeos e essa merda toda.
Sentia-se leve agora. Leve e vazia.
Sentou no sofá, pegou o controle do som e apertou o botão. Já habituado, o aparelho começou a tocar, volume 36, a faixa 3 do disco do Lou Reed. Música perfeita para dias imperfeitos.
Apenas à luz do abajur, notou o esmalte descascado, e encontrou uma garrafa de vinho tinto, pela metade. Ao lado o maço de cigarros, Lucky Strike Originals, sobre a mesa de centro. Pegou os dois, acendeu e tragou, um gole, suspirou a fumaça enquanto apertava o repeat no controle. Mais um gole, outro trago. Olhou pro teto e tentou imaginar um motivo coerente pro fato do vinho parecer tão insosso em sua boca, enquanto na dele, ganhava nuances luxuriosas, ganhava vida. Agora parecia sangue. Filho da puta! Quatro anos a menos e cheirava à loucura. Palavras certas nos momentos exatos, o êxtase, o sorriso displicente, o 'até logo, a gente se fala'. Passos largos e lentos, olha pra trás um olhar esmeralda e dobra a esquina.
Eu, paralisada, ofegante, com a sensação dúbia de ter visto Deus, e um segundo depois não saber se era real. O que é real? Tsc.
Apagou o cigarro, deixou o som ligado.
Domingo, de noite. Adormeceu, olhos borrados de maquiagem.
Não sonhou com nada.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Amor, ainda.

Aqui, na hora quente da noite No quase dia, no ofício ingrato de encontrar palavras De decifrá-las Torná-las menos vazias Enchê-las de significados Sentidos alados de inspiração Alguma emoção Quem sabe até poesia? Falar de amor com insistência Veemência Então talvez o medo de que ele exista Supere o temor de sua inexistência Duvidar talvez seja minha tendência Sou inquieto, insatisfeito Eu quero o fruto proibido O santo cálice, a quintessência Minha maldição é querer! Faz-me continuar a crer Continuar a buscar o que não posso ter E nem ao menos tocar E por enquanto Como que por encanto Eu digo que espero, te espero Só não demores...tanto Meu amor, ainda Temos, quem sabe, tempo Mas tudo finda, perde a cor Ainda, amor.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Uma Carta


Eu estive perdido nas ruas da cidade, com meus passos largos e rápidos,
Sem destino algum, minha vista embaçada e sem foco e sem cor, como num filme noir daqueles bem sujos, é, eu caminhei muitas milhas até aqui.
Eu vi todo tipo de pessoas e vi pessoas que haviam deixado de ser e vi a expressão do mundo nos olhos de um garoto de no máximo oito ou nove anos de idade que idolatrava e beijava sua garrafinha de tiner como se fossem as chagas de Cristo.
Quando me olhar nos olhos, não fique constrangido por não reconhecer o velho brilho, e se isso lhe entristecer eu irei entender. Minhas lágrimas secaram e minhas olheiras denunciam que perdi o sono há tempos. E nesse meio tempo, enquanto estava perdido e tentando me encontrar, muita coisa mudou pelo que vejo.
Me desculpe, mas não posso deixar de achar graça quando você se refere “ao meu mundo”, como se não fosse também o seu.  É triste que nossas reminiscências não passem de pura nostalgia, folhas de papel amareladas cheias de retalhos de antigos sonhos, às traças, ‘nosso mundo’, às traças.
Enquanto você trepava prestando tributos à Dionísio e toda sorte de paganismo orgiático, seguindo firmemente sua convicção de arauto da Luxúria, eu andei  sobre poças d’água e procurei bitucas pelo chão e ouvi sussurros e gritos e murmúrios pelos cantos e ao fundo o ressoar dos cascos de cavalos negros como a noite e rápidos como o vento, e por onde passavam tudo era lamento meu  caro, lamentos, e enquanto isso eu tentava imaginar em que ponto tornamo-nos insuportáveis e nocivos um ao outro.
Interdependência? Talvez. Existiam muitas coisas entre nós, sabíamos muito um do outro, e isso incomodava as pessoas; éramos livres e libertinos e rápidos demais pra que qualquer um daqueles párias acompanhasse. Quando tentavam ser como nós já havíamos mudado e mudado de novo. Esses foram os velhos tempos meu amigo, mas nos perdemos.  Eu dentro de mim, e você dentro de alguém.
Agradeço que tenhas indagado-me sobre aquele assunto, mas deixo minhas apologias, perdi  a prática quanto à enigmas e já não tenho a insistencia necessária para que fales claro comigo, logo, eu passo.
Se quiser conversar à respeito, sabe onde me encontrar, quando quiser.
No mais, espero que alcance seu objetivo, se é que ainda tens algum.


Um beijo fraterno, do seu,
                                    Lou.

é isso.


é isso. alcool, café, algumas mordidas, cigarros, potencial ocioso, esse sou eu. 

marvin, ban, lou reed...já não faz mais diferença.

procurando, esses somos nós, só procurando.


segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Nós e o Vazio

Nesse lugar já desgastado

Cheio de rostos retorcidos pelo tédio e pela mediocridade

Um cenário repleto de improbabilidade

Mas existe uma variável rara, a mais bela e luminosa excessão

Nesse imenso baile de máscaras, de movimentos ridiculamente repetitivos

Dançamos fora do compasso, criamos novos ritmos, e risos e choros e gritos

Algo só nosso.

Um extâse vezes doze.

Revolver

meu amor, o tempo rasteja. lento. lento.
 
o mau tempo persiste, uma chuva fina
 
o vento, ciscos nos meus olhos
 
eu tentando me animar, eu juro
 
eu juro que tento
 
em vão por enquanto. to sentindo muito a sua falta, cada vez mais
 
nocivo, lasciva relação entre dor, ausência, amor
 
e esses tipos de coisas. pequenos tormentos.
 
antes fossem seus olhos tempestuosos
 
antes fosse aquela chuva que nos mantem um pouco mais próximos
 
um pouco mais nossos...e de mais ninguem.
 
eu to pura abstinencia. revolvendo os confetes de um carnaval que já terminou.
 
Sem Momos, sem Pierrôs, sem...
 

Quero todos!

009

um poeta sem sua musa soa como
um baile sem música
um vinho sem alcool na noite sem lua
zero vírgula zero porcento de inspiração é o que me move
e agora já é dois do um
dois zero zero nove
e não há o que lamentar
não há o que temer
apenas deixar que venha
o que virá
e que seja indolor
que tenha a ver
com correr e buscar
moldar esse maya antes que ele me molde
eu vou destilar essas palavras
antes que elas me afoguem
e vou soprar pra quem quiser sentir
vou ouvir quem fizer questão de cantar
e correr quando alguem me esperar
deixar que me inspirem como ar
e percorrer as veias de quem quiser provar
invadir e envolver e depois
tirar a noite pra dançar
pedir que fique o quanto quiser ficar
me munir de empatia
agora não há porque brigar
seu reflexo sumiu do meu espelho
mas eu não me canso de olhar
algo ficou
algo sempre fica pairando no ar
como se não tivesse passado tempo
e fosse possível tocar
mas as velhas coisas bonitas
aquelas pessoas imperfeitas e tão nossas
já não ocupam os mesmos lugares
são agora devaneios e frases soltas
assimilações de imagens e sons
e aromas esvaídos entre outros milhares
sei que já me peguei parado esperando
algo que não ia acontecer porque já tinha acontecido
e foi triste dar-me conta que as páginas eram outras
ainda em branco
ainda em pranto
recomecei a escrever novos parágrafos
verso verso verso e pronto
bastava começar e não olhar pra trás
sem revirar o que poderia ser
simplesmente partir daquele ponto
mas sem mentir e dizer que não imagino
um belo reencontro
regado a café e novidades
livros velhos e novas sonoridades
Jack Kerouac e Sylvia Plath
e todo o resto que só pertence a quem quiser
tudo aquilo que me arrepia só de pensar.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Es ist ja Wahnsinn, net?



Alguns violinos distonantes e distorções de guitarra
Microfonia e gritos
Experimentalismo, algo muito etílico, insPirado
Uma sinfonia

Antes fossem esses dias insípidos
Ao menos amargos, ao menos melodiosos, mas não
O gosto é de ferrugem e bolor e silêncio
Especialidade da casa

Marasmo, torpor

Dias cheios de calor vazio
O vai e vem dos que não tem aonde ir
E o senta e espera dos que não sabem o que querem
Eu quero

Sair

Para ouvir algo além do som do espancamento
Surrado por samsara, respirando sem autonomia
Brincando de apnéia forçada, provocando desmaios
Morrendo alguns segundos, dispersando a dor

Um dia, dois dias
No terceiro pode arder, lacrimejar
Muito sintomático, mas não adianta correr, Jesse Owens
Não existem causas

Não há o que explicar.

Ela e Ele

Era uma noite de sexta-feira, Ela havia saído de casa apressada, à procura de algo ou alguém, não sabia ao certo, andava tão confusa ultimamente. Sabia apenas que precisava dissipar aquela nuvem obscura de dúvidas e vontades que pairava sobre sua cabeça, e enquanto pensava sobre essas coisas Ele apareceu pedindo fogo, Ela ofereceu seu isqueiro e Ele o agarrou um pouco trêmulo e acendeu um cigarro enquanto Ela o observava estudando sua expressão que parecia entediada e levemente desesperada também.
Ele sentou-se em frente a uma loja fechada e recostou-se na porta de ferro displicentemente, devolveu o isqueiro e balbuciou um "obrigado" quase inaudível. Ela sentou-se ao seu lado, Ele não pareceu surpreso, "deve estar perdida também", pensou, e enquanto Ela começava a puxar assunto, seu olhar a transpassava e a todo o resto, não que procurasse de fato algo, ou alguém, mas Ela seguia lhe falando sobre pessoas que Ele nem conhecia, então começou a contagem regressiva que sempre fazia, "depois desse cigarro eu vou embora", pensou, ignorando que era o terceiro cigarro que fumava com esse intuito.
Na verdade, Ela havia ensaiado coisas para dizer a Ele quando houvesse coragem e oportunidade, e Ela contava apenas com o segundo fator e não estava seguindo o script, estava perdendo a mão da cena; Ele ouvia o que Ela dizia, às vezes respondia com monossílabas ou meio evasivo, tragando o cigarro e soprando fumaça na brasa, que a essa hora alcançava o filtro.
Quando Ele deu o último trago, Ela sabia que o próximo passo seria Ele ir embora, mas antes que Ele jogasse fora seu cigarro, Ela sacou um e segurou a mão dele, deslizando até seus dedos, pegou a bituca ainda viva e a encostou na ponta do cigarro apagado, acendendo-o em um trago longo, soprou a fumaça na direção do rosto dele, por querer.
Ele abanou o ar e franzindo o cenho, perguntou meio irritado, "você quer me beijar, ou só me matar mais rápido mesmo?", Ela riu e passou à Ele o cigarro, "só queria um trago!" disse Ela, com a sensação de ter acertado no alvo.
Agora Ela reclamava de algum professor, e Ele parecia agora mais interessado, se não no assunto, talvez nas poses coreografadas que Ela usava sem dó; mexia no cabelo e sorria bonito e depois mexia nos botões da blusinha, como se dissesse "olhe pros meu peitos, não são lindos?", e bem, na realidade eram, então Ele resolveu adiar sua partida mais alguns cigarros.
Ele não estava elétrico como costumava ser, mas mantinha aquele charme sombrio, com olhos de mistério que deixavam a todos em suspense esperando sua próxima frase que nunca era óbvia, e podia ser profunda, naquele seu jeito de disfarçar melancolia com sarcasmo, ou simples e terrívelmente engraçada, nunca se sabia, e Ela sabia apenas que queria toda sua atenção para si, até que não lhe restasse escapatória a não ser para o lado dela.
Ele estava vulnerável. O amor de sua vida havia deixado claro, "não podiam ficar juntos", e depois de lhe pedir que "se cuidasse", simplesmente sumiu numa noite de lua cheia, deixando-o desolado e perplexo, seus sentidos abandonando-o, tornando-o cego, surdo, mudo e insensível; lembrou-se, naquela noite alguém tirou o chão debaixo de seus pés, atirando-o fundo nas trevas patéticas do desamor e do abandono, naquela noite tristemente linda.
Despertou do devaneio sorumbático notando a presença de outra garota, que insistia para que Ela a acompanhasse a algum lugar, Ela somente olhava a amiga que não a ouvia gritando por dentro "não! não!", então olhou para Ele, que fingia estar distraído e voltou a olhar para a amiga que se conformou e foi sozinha, depois de pedir que a esperasse voltar.
Essa foi a deixa para que Ele jogasse fora seu cigarro como se jogasse seu passado recente e infeliz junto, então olhando-a decidido, perguntou já de pé "é agora que a gente some, ou você só vai me desejar boa noite?", e Ela agora tinha uma expressão de surpresa e alegria reais, e depois de um instante de dúvida Ela disse "pra onde?", e Ele reagiu lhe dando a mão para que se levantasse, e dizendo que sabia de um lugar.
Andaram rápido e subiram uma rua, afastando-se do centro da cidade, Ele a puxou pelo braço para dentro de uma espécie de construção abandonada, onde alcançaram uma varanda grande no alto, estava apropriadamente escuro, Ela estava excitada e seu coração bateu forte como nunca quando Ele a encostou na parede e beijou-a frenéticamente os lábios, depois percorrendo seu pescoço e nuca, ao mesmo tempo em que abria sua blusa e acariciava-lhe os seios e tudo era êxtase e os dois ousavam e improvisavam movimentos e entrelaçavam-se cheios de ânsia, e logo estavam no chão sob um teto magnífico de estrelas, num frenesi de mãos e línguas, palavras soltas e unhas...
Ele rolou e logo estava por cima dela, beijou-lhe a barriga lisa, deslizando para baixo, alcançou e abriu-lhe o botão de seu jeans com os dentes, e quando tateou e encontrou o zíper, sentiu a mão dela sobre a sua e a olhou nos olhos para saber o que havia de errado.
Ela tinha um olhar entorpecido e quase suplicante, mas olhava-o com vontade quando disse "você só precisa dizer duas palavras", e sustentou aquele olhar de expectativa enquanto esperava uma resposta que pairava naquele ar na forma de silêncio absurdo e terrível.
Ele a olhou como se não houvesse entendido direito, e naquelas frações de segundos seguintes, Ele pensou em simplesmente mentir e aproveitar o momento, talvez fosse o que Ela queria que Ele fizesse; dissesse o que Ela queria ouvir, mas isso significava arcar com o peso daquelas palavras depois. Pensou também em algo enormemente cretino pra dizer em duas palavras, algo que faria Bukowski corar, mas também não disse.
Ela o fitava, e por um instante pareceu que Ele iria sorrir e dizer, mas o que parecia um sorriso de canto, retorceu-se e transmutou-se em algo que parecia confusão, depois desapontamento. Ele se levantou, acendeu um cigarro e olhou para as luzes da cidade, Ela encostou a cabeça no chão e apertou os olhos com as mãos, sentindo-se estranha.
Ele apagou o cigarro na metade e disse que tinha de ir embora. Ela disse "eu também", com a voz meio que falhando.
Desceram juntos e foram para lados contrários.
Ela chegou em casa, tomou um banho, chorou e dormiu convencida de que Ele valia a pena.
Ele chegou e foi direto dormir, decidido a deixar tudo como estava.

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Heroína


Cabeça apoiada na parede. De sua cama fitou o breu à sua frente, acompanhando a fumaça que transpassava a escuridão até chocar-se dispersa com o fiapo de luz débil e amarelado deixado pela porta entreaberta. Um pequeno trago. Chega.
Apagou o cigarro e tentou imaginar que horas eram, mas na realidade não fazia diferença, era apenas mais uma daquelas noites onde não havia ninguém por perto. Podia ouvir o barulho que fazia quando um  mosquito insistia em dar cabeçadas na lâmpada. TzzzTuk, TzzzTuk, TzzzTuk...
Caralho, disse pra si mesmo colocando os pés descalços no chão.
O quarto cheirava a cigarros e cirrose. Umas infiltrações, mofo. Porra e insenso de canela. Náusea.
Banheiro. Caminhou sonolento pelo corredor estreito. Uma planta agonizante, chapada e quieta no canto da porta. Abriu.
Paralisado, coçou a cabeça. Era linda e pálida. Ruiva, seminua. E tinha uma seringa pendurada no antebraço, cabelo úmido e olheiras que pareciam buracos negros. Fechou a porta, olhou pra planta. Água.
Foi à cozinha, armário, jarro. Água, quarto, corredor, porta, parou.
Planta. Não dessa vez. Abriu, despejou. Hey acorda. Nada. Acorda! Nada. Pulso. Pulsa. Sentou-se ao seu lado no chão molhado e pôs sua cabeça sobre seu colo. Reticências.
Aquilo o assustava, mas estranhamente sentia-se melhor. Não se lembrava de como ela fora parar ali, mas não estava mais sozinho. Adormeceu abraçado a ela, sentindo-se completo e protegido. Encontrara o amor de sua vida, morrendo no seu banheiro, e só se deu conta que era real quando encontrou sua carteira vazia na manhã seguinte, a planta tomando sol na janela.

Matheus 13:43



Vícios são como aqueles pesadelos terrivelmente recorrentes que te atacam no meio da noite aproveitando-se da vulnerabilidade do sono e da mística da escuridão.
Eu havia me livrado do meu, me mudado para uma vizinhança pacata; com o dinheiro que tinha pude alugar uma pequena casa, que usava para dormir durante o dia, enquanto ocupava-me com minhas leituras pela madrugada afora. Quase nunca saía, tudo parecia correr muito bem.
Até que, em um fim de tarde do inverno passado as coisas começaram a mudar. Havia acabado de acordar, posto a água do café para ferver e fui barbear-me. Com o rosto coberto de espuma, apreciava a quinta de Ludwig Van Beethoven no radinho enquanto retirava a navalha afiadíssima do estojo e iniciava a primeira passada, quando soou alto e claro no meu banheiro um som tuberculoso de tosses consecutivas, uma crise infernal de pulmões desesperados que se revolviam como se quisessem ser cuspidos, como se quisessem um pouco de ar fresco.
Aquilo perturbou-me, e a tensão cresceu quando olhei no espelho e ele olhou-me com aquele olhar de quem sabia o que eu estava pensando, olhar que não via há algum tempo, enquanto um fiapo de sangue brotava em meio à espuma.
Abri o armário, tentando esquivar o espelho, enxuguei o rosto, dispensei a água fervente na pia, vesti-me e saí.
Passei a noite em um prostíbulo, em meio aos gemidos das putas e ao brilho esmeralda do absinto, e absorto, percebi (lembrei?) que as cores e os sons que excitavam-me eram outros...
Pela manhã, ia aproximando-me de casa, quando o vi, velho, caquético, sentado em frente o portão de sua casa, as mãos trêmulas em espasmos dignos de Parkinson, uma delas levava um lenço até a boca e impedia que escarrasse nos transeuntes e abafava aquele som horrendo; cada vez que tossia, parecia que seus orgãos internos trocavam de lugar. A visão embrulhou-me o estômago e a claridade era demais. Cheguei em casa, vomitei, depois um longo banho e cama.
Acordei já era noite, provavelmente a mais fria do ano. Preparei algo para comer e tomei um cálice de vinho. Peguei Dostoiévski na estante, e foi bater o olho nas páginas e recomeçou o terror e já não tentei mais conter meu ímpeto, agora vejo, Matheus estava correto: Quando o espírito imundo sai do homem, anda por lugares áridos procurando repouso, porém não encontra. Não encontra.
Arrumei minhas coisas, separei as ferramentas, guardei na mala, saí e fui direto na direção da casa do ancião. Foi fácil, o portão estava destrancado, sabia que seu quarto era nos fundos. Abri a porta do quarto, ele olhou-me com olhos de terror, esbugalhados, e o susto potencializou sua crise, coff, coof, blearghh, mandei que se calasse, ele murmurava e tossia, eu abri minha mala e peguei minha Bíblia e minha navalha, me joguei em cima dele apoiando meus joelhos no seu tronco sobre a cama, enquanto recitava as últimas palavras que aquele maldito enfermo ouviria antes de se juntar ao Senhor: (...)"põe-se de tocaia nas vilas, trucida os inocentes nos lugares ocultos, seus olhos espreitam o desamparado. Está ele de emboscada para enlaçar o pobre: Apanha-o, e na sua rede o enleia. Abaixa-se e rasteja; em seu poder lhe caem os necessitados. Diz ele, no seu íntimo: Deus se esqueceu, virou seu rosto e não verá isso nunca".
Cortei-lhe a garganta, o som derradeiro, já não parecia uma tosse. Abri-lhe o tórax, extirpei os pulmões negros dos quais escorria uma espécie de suco, fedia a nicotina, pendurei-os no varal, e enquanto observava seus movimentos ao vento, recitei o Salmo 26:6*.
Fui direto à estação de trem, partiria para o Leste. Comprei um maço de cigarros e um café; voltei a ser quem eu era, e inexplicavelmente, sentia-me feliz com isso.


*Lavo as mãos na inocência, e assim, andarei, Senhor, ao redor do teu altar.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Samsara


Acordara sobressaltado e transpirando. Havia sido difícil se libertar dos  pesadelos recorrentes com os quais sonhava quase todas as noites. Olhou em volta, seus olhos se adaptando à escuridão de seu quarto, vislumbrou a porta entreaberta.
Sentou-se a beirada da cama, controlando a respiração antes ofegante, e procurou em volta pelo par de tênis surrado. Calçou e se dirigiu a cozinha. Estava a casa vazia. Olhou o relógio do velho microondas, 00:30 de uma sexta-feira fria.
Abriu o armário em busca da caixa de remédios, sacou uma cartela de analgésicos (único remédio que lhe amenizava as terríveis dores de dente). Ingeriu duas pastilhas que deslizaram até seu estômago, embaladas por um gole de saquê, que jazia esquecido no fundo de sua geladeira semivazia. Estava desempregado havia mais de dois meses. Havia trabalhado em quase todas das poucas pequenas indústrias de sua cidade, que era do tipo “cidade-dormitório”, perto da capital do estado, porém longe de ter um desenvolvimento significativo.
Costumava dizer que essas tais indústrias te contratavam, te exploravam em caráter de “experiência” e depois te davam um kit; “kit-fóde”. Rua de novo.
Quando jovem freqüentava a igreja por obrigação, e constrangia seus pais quando questionava publicamente o padre local com as mais cretinas perguntas sobre a existência de Deus (da qual sempre duvidou). Com 14 anos leu Nietzsche pela primeira vez, e decidiu que já era hora de matar aquele velho senhor barbudo, que desde sempre controlara sua vida, e que havia levado embora a maioria das pessoas com as quais chegou a se importar, inclusive seu primeiro e único amor, Sophia, que havia conhecido no sétimo ano do ensino fundamental.
Tornara-se um niilista, adepto da descrença absoluta.
Em meio aquela fragilidade hostil, a qual foi designado a viver, respirava mal. Cansara-se de seu meio.
Sentia-se oprimido. Mas o tipo de oprimido sem revolta.O pária.
O rei dos sem-situação. Em meio a toda aquela perfeição, o descaso consigo. Gritava. Era tão intolerável a rotineira visão de todos os dias. Que passavam e sempre sem sua ordem prosseguiam.
Em meio a todos sussurros enfurecidos de sua mente, dirigia-se ao espelho, e nada mais deferia ao próprio reflexo do que foda-se.
Não choraria, sabia dos perigos. Jamais sorriria, pois nunca aprendeu.
Havia encontrado a verdade como Mulher.
E como homem, odiava ser controlado por um pinto.
Que raramente não usa a mulher como fuga.
A homogeneidade do barulho e do silêncio deturpava seu raciocínio. Precisava de dinheiro. Precisava pensar. Precisava sair.
Fechou a porta atrás de si, mas antes se lembrou de não esquecer a garrafa de saquê. Um belo gole, longo suspiro. Saiu sem rumo, a porta destrancada.
Subúrbio mal iluminado pelas luzes dos postes, que piscavam provocando zunidos; televisores reluziam na maioria das casas, alienação em massa.
Aquelas pessoas, pensava, mal tinham o que comer, e se deliciavam todas as noites nas festas da alta-sociedade no programa do Amaury Jr. Esqueciam seus débitos, suas doenças, enquanto viviam as aventuras e desventuras da protagonista da novela das oito...
Não suportava a idéia, não conseguia fantasiar, tão densa sua realidade. Seus pés sempre cravados ao chão.
Apalpou os bolsos a procura de seu maço de cigarros.
Restavam-lhe três.
Acendeu o primeiro.
E na tentativa de fugir dos ruídos e pessoas indesejáveis, evitou o centro da cidade, e locomoveu-se às margens.
Caminhou sem ser notado e sem nada notar. Pensamentos obscuros e confusos. A mistura de álcool e analgésicos, essa sim, fazia-se notar.
Caminhou durante aproximadamente uma hora, sem ao menos se dar conta de onde estava indo, e nesse meio tempo esvaziou a garrafa.
Sentiu-se tonto, até então caminhara observando apenas o chão, mas agora sentia a necessidade de levantar a cabeça e tragar mais profundamente aquele ar viciado, mistura de monóxido de carbono com um toque de oxigênio.
Sentiu-se pior. As pernas amoleceram de súbito, mas evitou a queda.
Conhecia muito bem aquele lugar, a rua, o colégio, as calçadas...Durante os últimos anos o havia evitado.
Sua visão se turvou, já não focava lugar algum, perdeu-se dentro de si.
Se por ventura um transeunte qualquer o avistasse naquele lugar, a essa hora deserto, o rosto pálido, seus olhos azul-acinzentados mal seriam notados devido a dilatação exagerada de suas pupilas; daria por certo que nele não havia qualquer sinal de vida, excluso o fato de estar em pé.
Sua mente foi invadida por sons e imagens de outrora.
O mesmo lugar, o mesmo colégio.
Era o dia em que revelaria seus sentimentos, abriria seu coração, e no seu íntimo, sabia que seria correspondido.
Lembrou-se de todo medo e insegurança que sentiu. Preferira escrever uma carta, revelando seus sentimentos à jovem Sophia.
Antes de soar o sinal, posicionou a carta estrategicamente em meio às folhas de seu caderno. Podia ver tudo em câmera lenta...Saíra primeiro...Atravessou a rua...Ficou de frente para o portão.
Ela saiu. O avistou e sorriu. Atravessaria a rua para se despedir...Três passos, algo cai ao chão...
Abaixa-se curiosa, apanha o envelope, reconhece a letra.
È tomada por algum tipo estranho de euforia, enquanto tenta decifrar os garranchos da primeira linha... Sorri...Antes de prosseguir, queria olhá-lo mais uma vez. Ergueu a vista, e teve tempo de ver um rosto cheio de terror, e ouvir um grito desesperado.
Não veria mais nada.
Suava frio, ainda imerso em suas lembranças. Aquele último olhar, expressara mais felicidade do que jamais sentira até então...O sorriso...
O caminhão em alta velocidade fugia da polícia. O impacto e o som que produzira...A mancha de sangue, que se arrastava por muitos metros...O corpo retorcido sobre a faixa de pedestres.
Atirou-se sentado ao chão, justamente como fizera no dia fatídico. Ainda em estado semiconsciente, acendeu seu penúltimo cigarro por reflexo condicionado.
Frenesi caótico de pensamentos...
Choque, dor, culpa, amor, a morte, sangue, sangue, culpa, desespero, fuga, culpa, sem-saída...
Dejà vú. Sentimentos repetidos em um samsara* com o peso de 36 infernos.
O que viria depois?
Imergiu com furor de volta a realidade, como que para fugir de um pesadelo, e como alguém que estava se afogando e consegue voltar à tona, abriu os olhos num suspiro claustrofóbico, o cigarro esvaído em cinzas.
Silêncio.
Inspirou, e teve a impressão de enxergar melhor, tudo parecia mais nítido. Ouvia agora o cantar de grilos, e como cantavam alto!
Sentia-se leve, muito leve, como se tivessem tirado todo o peso da Terra de seus ombros. No auge de todo o declínio, teve a percepção que poucos sábios tem, que ao tocar o fundo do poço, não resta outra saída senão subir.
Percebeu que até então, ele próprio havia sido seu pior inimigo. Criara e alimentara os fantasmas que lhe assombraram todas as noites até então.
Toda a fuga em nada resultara, pois não se pode fugir de si próprio.
Aquela rua parecia-lhe agora como outra qualquer. O fato de tê-la evitado tanto tempo era a origem do mal.
Nascia o dia. Nascera de novo. Levantou-se, sacou seu último cigarro e decidiu que caminharia, mas agora sabia seu destino. Jamais olharia pra trás, aos mortos seu suposto descanso, e a vantagem de não ter de voltar a morrer.
Escolheu viver.
Naquela manhã, renascido das cinzas, caminhou rumo à luz e vislumbrou seu reflexo.
Nada disse, mas pela primeira vez, sorriu.

*do sânscrito, ‘ciclo que nunca pára’.